Por Felipe Gofferman
O cinema, desde suas primeiras décadas, tem papel como formador de opinião e é responsável por moldar gerações e ditar comportamentos. O potencial de ditar costumes sempre foi usado para fins comerciais e como ferramenta de controle, mas com os anos alguns movimentos se aproveitaram dessa máquina para reivindicar espaço e ter sua voz amplificada na telona.
As décadas de 20, 30, 40 e 50 abrigaram os chamados “race films”, um movimento cinematográfico que produziu centenas de filmes feitos por e para a comunidade negra dos Estados Unidos.
A existência desses filmes foi ignorada na época e ainda hoje pouco se fala sobre o gênero, mas eles foram importantes para a comunidade se ver representada no cinema onde antes mal poderiam entrar por não ter o direito de se sentar ao lado dos norte-americanos brancos.
Nos anos seguintes, com a efervescência das lutas pelos direitos civis, um novo movimento negro surge. O Blaxploitation leva para as telas um grito reprimido e aposta na violência através de seus heróis negros que conviviam com a criminalidade e traziam, ainda que de forma exagerada, a realidade dos guetos norte-americanos para as telas do cinema. O subgênero foi muito popular e trazia como destaque músicas do soul e do funk, como as lendárias trilhas de Isaac Hayes, Marvin Gaye e James Brown.
O Blaxploitation ainda trouxe heroínas como protagonistas de seus filmes. Pam Grier e Tamara Dobson se destacaram em meio a tantos heróis masculinos e fizeram grande sucesso com suas personagens.
A luta pelos direitos civis seguiu e teve sucesso, mas ainda hoje a luta por espaço para as minorias no cinema continua. Mulheres, minorias étnicas e a comunidade LGBTQ vem buscando dar voz aos seus anseios e se verem representadas sem que isso signifique se ver através de personagens estereotipados e falsos. O número de filmes liderados por diretores e produtores dessas minorias é insignificante e essa é uma briga que deve ser travada dia após dia. A arte, como um espelho da nossa sociedade, precisa refletir sobre os erros do passado e impedir que sigam acontecendo.
O cinema LGBTQ se fazia presente de tempos em tempos, sem se consolidar como o movimento prolífico que precisava ser, mas recentemente as produções começaram a se tornar mais frequentes e finalmente o boom do gênero parece ter chegado.
Os cinemas asiáticos obviamente têm suas peculiaridades pelas construções completamente diferentes da cultura de cada país, mas a busca pela representatividade tem crescido mesmo em regiões com forte histórico de repressão. Diretores e produtores das principais indústrias cinematográficas da Ásia se dedicaram, mesmo em tempos totalmente inférteis para o gênero, a abraçar a diversidade pelo menos em relação a temática das obras.
A coluna de hoje seria uma edição única para contextualizar o movimento de acordo com cada país, mas durante a pesquisa ficou claro que há material suficiente para uma série de abordagens e indicações de filmes de backgrounds completamente diferentes e com qualidade cinematográfica incontestável.
Os dois filmes abordados nessa primeira parte possuem estéticas totalmente distintas, mas são igualmente geniais. O Funeral das Rosas (1969) é fruto de uma nova onda do cinema japonês que trazia o vigor de uma juventude que explorava frequentemente a sexualidade e os tabus, enquanto Felizes Juntos (1997) traz o visual marcante e a sensibilidade para retratar as relações do espetacular diretor chinês Wong Kar-wai.
O Japão, particularmente, tem uma história muito curiosa com relação a aceitação da comunidade LGBTQ. A homossexualidade caminhava de mãos dadas com a cultura samurai, sendo totalmente natural e permitida sem reservas. Os espadachins japoneses tinham como conceito que lutar ao lado de quem se ama torná-los-ia ainda mais ferozes em combate para que conseguissem proteger seus parceiros.
O teatro Kabuki, origem da escola de atuação japonesa e maior inspiração para o primeiro cinema do país, teve as mulheres banidas de seus palcos no início do século 17 e precisou adotar elencos totalmente masculinos. Os homens, nesse contexto, representavam os papéis femininos com as pesadas maquiagens, já tradicionais no Kabuki, e chamativas roupas femininas. Essa tradição tem repercussões ainda hoje, pois estabeleceu-se uma cultura televisiva de personagens crossdressers, mas a admiração por essas figuras infelizmente para no âmbito da ficção.
A abertura para o ocidente no século 19, porém, trouxe junto certos preconceitos. A comunidade transexual já sofria rejeição, mas mesmo os homossexuais passaram a perder seu espaço e hoje vivem sem se expor. Hoje a comunidade LGBTQ continua marginalizada no Japão.
A China partilha de uma história muito semelhante. A homossexualidade era difundida e plenamente aceita até a abertura para a cultura ocidental. Juntamente com as novas filosofias chegava a homofobia.
A ópera de Pequim tinha papel semelhante ao teatro Kabuki, tendo homens interpretando papéis femininos, mas ainda hoje os transexuais sofrem sérios problemas na busca por respeito frente as entidades públicas. A ópera de Pequim será explorada mais a fundo em um futuro post quando abordarmos o clássico Adeus, minha concubina (1993), mas ela possui um papel muito negativo no que tange os direitos LGBTQ.
As duas sociedades, graças a um machismo muito presente, também rejeitavam relacionamentos entre mulheres, limitando o respeito apenas aos homens.
O Funeral das Rosas
Escrito e dirigido por Toshio Matsumoto, O Funeral das Rosas (1969) é uma obra-prima da nova onda japonesa.
A história acompanha Eddie (Pîtâ), uma transexual que trabalha num bar gay em meio a um submundo de drogas e liberdades que contrastam com a sociedade repressora do Japão enquanto, em sua vida fora do trabalho, busca seu caminho pelos movimentos artísticos que surgem e tenta se livrar de traumas da adolescência.
Pita (Versão japonesa para Peter) é o nome adotado por Shinnosuke Ikehata, um dos mais proeminentes artistas homossexuais do Japão, que ficou reconhecido por seu visual andrógeno e pela participação e apresentação em programas de TV, filmes e musicais. Pita é extremamente carismático e foi descoberto enquanto trabalhava como hostess de um bar homossexual, exatamente como sua personagem. Apesar de O Funeral das Rosas ser o primeiro papel de Pita, sua capacidade de criar um elo com o espectador e a força de sua atuação são peças importantes na construção de Eddie.
Vale ressaltar, no entanto, a falta de necessidade de uma história linear. Esqueça a sinopse, pois o importante aqui não é o “o que”, mas o “como” a história é contada. O Funeral das Rosas é um estudo de linguagem e uma bem-sucedida amalgama de referências e abordagens sobre um universo que ainda busca se entender.
As influências de Pasolini, Godard, Buñuel e até Chaplin servem como ferramentas nas mãos de Matsumoto para explorar um submundo da contracultura que surgia pelas noites japonesas, mas o longa não se limita a sofrer interferência de obras anteriores, sendo também uma importante referência para inúmeros cineastas. Stanley Kubrick, por exemplo, cita o longa como fundamental para a criação de seu Laranja Mecânica (1971), o que fica bem claro quando notamos o uso da trilha irônica ou a cena em que as jovens caminham pela rua exatamente como o protagonista vivido por Malcolm McDowell e seus comparsas na clássica cena ao som de La Gazza Ladra de Rossini.
O Funeral das Rosas transita entre o ficcional e o documental, pausando seus momentos dramáticos para mostrar breves entrevistas com figuras reais explicando suas escolhas e expondo seus sonhos. Transexuais e crossdressers que lidam com a repressão sexual e o conservadorismo tão enraizado na cultura japonesa mostram seus rostos e se expõem ao cineasta ao abordar a impossibilidade do casamento por vias legais ou mesmo a operação de mudança de sexo.
A mudança de estilos e linguagem é facilitada pela montagem fragmentada que possibilita as inserções de estéticas totalmente diferentes sem que soe ridículo. Em determinado momento, por exemplo, vemos as personagens em um ritmo acelerado acompanhado de uma música cômica no melhor estilo Benny Hill, enquanto em outro temos os jump cuts que homenageiam o Acossado (1960) de Godard ou ainda somos brindados com composições e colagens que mostram um flerte sem medo de Matsumoto com o expressionismo.
O Funeral das Rosas explora a beleza do corpo em meio a revoluções culturais e artísticas enquanto lida com a rejeição sofrida pela comunidade LGBTQ através dos modelos heteronormativos impostos desde a infância, que causam dificuldades na aceitação do próprio corpo e provocam autoflagelos e sofrimento.
O uso do subtexto e do simbolismo é parte fundamental na construção do universo do filme e, através do mergulho nas relações e anseios da protagonista, nos possibilita entender um pouco da sociedade japonesa da época. O longa de Toshio Matsumoto parece se apropriar do pujante submundo que aborda para refletir em sua estética toda a energia e experimentação do tema que pretende explorar.
Nesse sentido vale voltar ao “como” citado anteriormente. O Funeral das Rosas é um daqueles filmes em que, após assistir quantas vezes forem, somos forçados a pensar no que vimos. Não em relação a história, mas em relação ao fazer cinematográfico. Ao subir dos créditos fica a sensação de que passamos por uma experiência única e fascinante, mas surge o questionamento: será que o cinema de hoje não poderia ser mais livre de amarras e mais contestador?
Felizes Juntos
A parceria entre o diretor Wong Kar-wai, o diretor de fotografia Christopher Doyle e o diretor de arte William Chang é responsável por grandes pérolas do cinema de Hong Kong.
Felizes Juntos (1997) volta a empregar as belíssimas lentes grande-angulares de Doyle e Kar-wai para criar uma atmosfera ao mesmo tempo instigante e intoxicante.
O título brasileiro (tradução literal do título em inglês), por incrivel que pareça, é uma escolha certeira por sua ironia. O longa conta a história de Lai Yiu-fai (Tony Leung) e Ho Po-wing (Leslie Cheung), dois chineses que se mudam para a Argentina buscando reencontrar o rumo de suas vidas. O casal vive de idas e vindas graças ao choque de suas personalidades, mas ambos mantém, em meio a duras brigas, o sonho de visitar as cataratas do Iguaçu.
O objetivo simplório do casal não pede grande entrega do espectador, mas dota de certo charme a relação entre os personagens.
Tony Leung e Leslie Cheung se entregam aos personagens e criam um casal verossímil e repleto de nuances e peculiaridades perceptíveis apenas através de suas magníficas atuações. A construção dos conflitos entre os dois é feita de forma gradual adotando as já tradicionais variações estéticas impostas por Kar-wai. O diretor, através da técnica conhecida como step printing, falseia um slow motion que cria um discurso em momentos distintos e, como poucos cineastas conseguem, parece congelar o tempo para representar as emoções de seus personagens.
A fotografia de Doyle é quente e conversa com a capacidade de Kar-wai de mergulhar no estudo de seus personagens. O diretor de fotografia é uma das estrelas do filme. Suas cores, seu preto e branco, sua lente de 6.5mm que parece sugar todo o ambiente ao redor e o uso magistral das luzes mesmo nos menores ambientes já seriam suficientes para tornar o filme um prato cheio.
A chegada de um terceiro personagem na história de amor e ódio entre Yiu-fai e Po-wing só serve para destacar a capacidade de Kar-wai para criar a relação interpessoal de forma madura.
Felizes Juntos não é um conto de fadas e nem é um filme que utiliza personagens homossexuais para chocar. Wong Kar-wai trás para a tela um cinema humano em todas as suas minucias. A paixão, as brigas, a dor e os “recomeços” fazem parte da vida de todos nós e imprimir isso em seus protagonistas é um dos maiores méritos do longa.
A forma como o diretor/autor consegue inverter os sentimentos que vamos nutrindo pelos personagens e a constante exibição de virtudes e defeitos que nos fazem únicos é algo muito difícil de ser transmitir para a tela, mas o trabalho de Kar-wai é impecável. O apego a que somos submetidos, como meros observadores impotentes, quanto a relação dos dois protagonistas e o desapego forçado que precisamos compartilhar com ambos é algo realmente extraordinário e doloroso.
Felizes Juntos é uma obra única pela capacidade de nos trazer para dentro das relações de seus personagens. O longa, como já dito, não aborda um romance homoafetivo, mas sim uma história entre pessoas. Wong Kar-wai abre uma janela para sentimentos e situações que todos passamos ou vamos passar um dia com uma sensibilidade marcante e universal.
O Funeral das Rosas e Felizes Juntos são apenas dois exemplos desse cenário que precisa manter o crescimento e que ainda busca se encontrar como movimento, mas várias outras belas obras estão por ai esperando para serem vistas.
Filmes como Mal dos Trópicos (Tailândia, 2004), Como Grãos de Areia (Japão, 1995), Lan se da men (Taiwan, 2002) e Rak haeng Siam (Tailândia, 2007) valem a busca e serão abordados em futuras colunas da série.
O cinema asiático, apesar da grande defasagem em relação a alguns mercados ocidentais que já realizam várias produções LGBTQ por ano, ainda tem muito o que oferecer.