Por Felippe Gofferman
Takeshi Kitano, um dos grandes cineastas japoneses ainda em atividade, tem uma história no mínimo interessante. Nascido logo após o fim da 2ª Guerra, Kitano abandonou a faculdade de engenharia para anos mais tarde se mudar para o distrito de Asakusa em busca de se tornar um comediante.
Sob a tutela de Fukami Senzaburo, um importante comediante que atuava nos teatros de Asakusa, Takeshi se formou no gênero e encontrou seu caminho para o sucesso. Os trabalhos nos palcos levaram a outro comediante buscar no ator um par para futuros trabalhos.
Kiyoshi Kaneko se juntou a Kitano para formar uma dupla de Manzai, um estilo de comédia onde a dinâmica entre um personagem engraçado e outro mais sério resultam em piadas e gags baseados na velocidade em que apresentam seu material e no contraste entre suas personalidades. Uma espécie de “good cop, bad cop” humorístico que utiliza a estrutura clássica de protagonista e escada e que muitas vezes, por sua rapidez e improviso, flertavam com o nosso repentismo.
A dupla, no entanto, só teve sucesso quando a veia de Takeshi Kitano para a escrita falou mais alta e o diretor tomou à frente dos textos de seus shows.
Os dois jovens passam então a usar Beat em seus nomes, dando origem a dupla Two Beats. O sucesso logo veio, mas o curioso é que os textos de Kitano não se pareciam em nada com o que era feito na televisão. As piadas do roteirista eram pesadas e já deixavam claro sua queda pelo humor negro e sem amarras. O humor do futuro diretor era pesado e muitas vezes passava do limite, tendo sido alvo frequente da censura televisiva.
A fama da dupla cresceu e a carreira solo de ambos era inevitável. Apesar do término da dupla, Kitano manteve o nome artístico em sua carreira, consolidando seu alter ego dos palcos como uma entidade.
Beat Takeshi se tornou um dos mais importantes comediantes da TV e da Rádio japonesa, sendo responsável por inúmeros programas e participações. A título de curiosidade vale destacar seu programa Fūun! Takeshi-jō (1986-1989), que deu origem a nada menos que as saudosas Olimpíadas do Faustão. Além disso, ele é um dos responsáveis pela criação dos humorísticos sadomasoquistas que vez ou outra tem algum de seus quadros viralizados e chegam pelas bandas de cá com participantes engolindo insetos em uma competição de assopro ou apanhando de alguma máquina.
O sucesso solo trouxe reconhecimento, mas logo começou a incomodá-lo por ter que se prender a um gênero para demonstrar seu talento. A saída encontrada foi buscar uma nova linha de atuação, dessa vez no cinema.
O seu primeiro papel dramático de destaque veio no filme Furyo, em nome da Honra (1983), do lendário diretor japonês Nagisa Ôshima. A atuação rendeu elogios e abriu novas portas, mas gerou certo estranhamento para o público local que esperava do ator um personagem mais cômico.
Kitano, no entanto, já deixava surgir à tona uma verdade até então difícil de ver: ele não era o Beat Takeshi. A persona criada para os palcos nada mais era que uma figura que se difere totalmente de seu próprio modo de agir e pensar. A criatura, no entanto, parecia ser muito maior que seu criador e era isso que ele buscava quebrar.
A situação começa a mudar de verdade apenas seis anos depois de fazer o filme de Ôshima.
Policial Violento (1989) é a estreia de Kitano como diretor. Após divergências com o diretor do filme, ocasionando a saída do mesmo, a produtora decide oferecer ao ator a chance de tomar as rédeas da produção.
O longa dá vida à persona que colocou o nome de Takeshi Kitano como um dos mais importantes do cinema japonês. Se o avatar Beat Takeshi pode ser associado à sua veia cômica, o personagem policial que começa a se moldar em Policial Violento é uma terceira construção de personalidade calcada em seu alter ego que viria a acompanhar o ator por toda carreira.
A figura “Takeshi Kitano” passa a tomar forma como o seu lado diretor. O choque entre sua versão comediante e o trabalho como diretor é gritante. A maturidade de sua direção apresentada já em seu primeiro longa era um indicativo de uma carreira brilhante.
Os anos seguintes à Policial Violento serviram para que o diretor ampliasse seu leque e demonstrasse sua versatilidade e sensibilidade.
3-4 x jûgatsu (1990) e O mar mais silencioso daquele verão (1991) são exemplos distintos de sua capacidade de abordar temas e gêneros. Em ambos os filmes há um toque de Beat Takeshi, mas em sua grande parte são construções de seu lado diretor que utiliza a comédia para acrescentar um tempero a trama.
Adrenalina Máxima (1993) é um marco em sua carreira e um jovem clássico do cinema japonês. Aqui já se estabelecia seu arquétipo mais cultuado e que de certa forma é a antítese de Beat Takeshi, embora haja certo humor negro em sua forma de lidar com a violência. O protagonista do longa é um membro da Yakuza calado e sisudo.
O clima de Adrenalina Máxima é soturno e traz a tendência de subversão de gênero de Takeshi. O curioso é perceber que o longa reflete muito mais o momento da vida do diretor que seus trabalhos cômicos. Kitano, que vivia problemas em sua vida relacionados ao alcoolismo e mortes de pessoas importantes nos anos anteriores, produz diversas referências ao suicídio e banaliza a vida sem remorsos.
O personagem, como o pistoleiro sem nome de Clint Eastwood, passou a ser o carro chefe de Kitano como ator. Embora nuances de sua personalidade, sua atuação e o background do protagonista mudassem de filme em filme, o cerne estava lá.
Adrenalina Máxima foi seguido por dois filmes totalmente diferentes. Minnâ-yatteruka! (1994) é uma volta a comédia exagerada e uma volta a vida de seu lado Beat Takeshi no cinema, enquanto Kids Return – De volta as aulas (1996) é um novo clássico que aborda a juventude de forma sensível e profunda, questionando os rumos que as vidas podem tomar, as decisões que fazemos e a forma como a sociedade nos pressiona em direção a determinados caminhos.
A obra-prima de Takeshi Kitano, porém, veio em 1997.
Hana-bi – Fogos de Artifício (1997) traz o próprio Takeshi no papel de Nishi, um policial reformado após uma batida fracassada que precisa lidar com o excesso de tempo livre, o pouco dinheiro e uma grave doença de sua esposa, enquanto bate de frente com um agiota e seus capangas.
Os traços do trabalho de Kitano são marcantes e dotam o filme de uma complexidade maior do que a história aparenta ter, dando sentido e profundidade aos personagens com certa importância ou mesmo acrescentando outros que não movem a trama diretamente, mas constituem importantes representações de facetas do protagonista e das pessoas sem rostos que nos rodeiam todos os dias sem que prestamos a devida atenção.
A atuação de Takeshi é um dos pontos altos do filme. O ator demonstra a força de sua presença em cena ao dar vida a um personagem que praticamente não fala durante todo o filme, mas que diz muito com o olhar e suas expressões, ainda que discretas e calcadas nos detalhes de seus tiques e em sua postura que exala calma e segurança frente às cenas dramáticas e que demandam mais ação por parte de Nishi.
As cores lavadas da fotografia de Hideo Yamamoto casam perfeitamente com os personagens e conversam com a arte e o figurino que evita criar personalidades através das cores, deixando as roupas neutras durante as cenas, com a exceção de algumas cenas pontuais e discursivas. Essa opção de não utilizar uma paleta forte como padrão para o filme acaba criando um grande contraste provocado pela ideia de Kitano de pincelar as cenas importantes com coloridas e significativas pinturas nas paredes, sendo todas elas referências a algum momento ou sentimento latente dos personagens.
O roteiro, que foi escrito por Takeshi, não se preocupa com as convenções e prioriza o espírito dos personagens, o que se fortalece com a montagem que interliga as pinturas feitas por um ex-policial que participou na ação fracassada de forma a constituir a narrativa através do mesmo ritmo que os quadros representam em seu pontilhismo.
Hana-bi – Fogos de Artifício é um drama com doses de ação muito bem moderadas por Takeshi Kitano. O diretor opta, em diversos momentos, por simplesmente não mostrar a violência e deixa o trabalho para o som enquanto o plano parado esquece o extracampo, mas sem deixar de mostrar a brutalidade do ser humano quando julga necessário. A produção não economiza no sangue, que possui um aspecto pouco realístico de tinta, um recurso que diferencia o tempo de policial de Nishi de seus momentos aposentado.
O filme adiciona ao gênero policial pitadas de Yakuza, faroeste e até do cinema Samurai. Nishi, na verdade, tem seus dilemas expostos como se fosse um ronin moderno e segue seu próprio código de conduta, uma espécie de bushido distorcido por suas cicatrizes adquiridas durante a vida.
Verão Feliz (1999), por sua vez, divide os holofotes com Adrenalina Máxima e Hana-bi como um dos melhores de sua filmografia. O longa é uma volta ao trato e a observação do ser humano de forma mais sensível, deixando a violência para trás. A construção dos personagens e da trama que se divide entre a leveza, a inocência infantil e a dura realidade não percebida por uma criança, é fruto de uma reflexão sobre a própria infância de Takeshi, que foi abandonado por seu pai alcoólatra.
A dinâmica entre o personagem rígido, mas que permite certa abertura, de Kitano, com a do pequeno sonhador interpretado por Yusuke Sekiguchi é definitivamente especial. Os dois atores conseguem, obviamente com Takeshi servindo como escada para o mais jovem, transitar da realidade para o lúdico sem soar piegas ou ridículo e passear entre a comédia, fruto da cabeça de uma criança, e o drama do dia-a-dia com sucesso.
Takeshi Kitano completou 69 anos em janeiro, mas continua trabalhando em sua visão única do mundo através de seus filmes. Participando de programas humorísticos quase que diariamente na TV japonesa, o talentoso diretor, roteirista e ator busca tempo em seu atribulado cotidiano para nos brindar com grandes filmes e momentos memoráveis.
A plural filmografia de Kitano ainda conta com obras incríveis como o poético e reflexivo Dolls (2002), o irônico exercício de metalinguagem Glória ao Cineasta! (2007), a releitura do clássico samurai em Zatoichi (2003), a adaptação Yakuza às ruas norte-americana em Brother – A máfia japonesa Yakuza em Los Angeles (2000) e ainda o bizarro, divertido e também metalinguístico Takeshis’ (2005).
O cinema de Kitano é repleto de silêncio e brutalidade, mas preserva momentos de ternura e humanidade. A versatilidade do diretor contrasta com a existência dessas personas que permeiam seu trabalho, mas indicam sua genialidade e sua capacidade de se multiplicar e se expor em seus filmes.