Toda vez que penso num filme do Lars, penso que vou ter que parar pra dedicar algumas horas do meu dia pra ver mais uma vez como o diretor dinamarquês rasga a vida na tela do cinema. Viver é rasgar espaços. E a impressão que eu tenho é que Von Trier é especialista em abrir e sangrar feridas. Mas diferentemente do poeta, ele não se preocupa em remendar coisa alguma.
Dançando no Escuro (Dancer in the Dark) é o primeiro musical da carreira de Lars Von Trier, que assina roteiro e direção. Estreou nos anos 2000 e entre os vários prêmios aos quais foi indicado, levou Palma de Ouro em Cannes e também o de Melhor Atriz para Björk.
Basicamente, a história gira em torno da vida de Selma, uma moça que abandonou sua rotina na antiga Checoslováquia para trabalhar como operária numa fábrica nos Estados Unidos. Selma sonha em ser atriz de musicais e, assim como seu filho pequeno, tem uma doença aparentemente inexplicável que leva à cegueira.
Depois de uma abertura clássica de musical, com um número de orquestra fazendo a cama para uma sobreposição de imagens borradas, o que se vê é um ensaio atrapalhado e confuso de uma peça de teatro da qual Selma é a protagonista.
“She sings funny” – ela canta de um jeito engraçado, diz um dos atores no filme. Pudera!, estamos falando de Björk. E que atire a primeira pedra quem nunca ouviu uma de suas canções e torceu o nariz para os barulhos, as estranhezas, os desvios e acidentes de afinação. Sim, ela canta de um jeito engraçado e é por isso que é tão bonito seu trabalho.
Na maior parte do tempo, Björk contracena com Catherine Deneuve com profundidade e delicadeza. Saltam aos olhos do espectador os planos tremidos, os zooms, as imagens montadas como se fossem parte de um grande compilado de microfilmes caseiros. A sensação é essa: tudo é tão natural que, mesmo em momentos estranhos como os números musicais que crescem ao longo do filme e por vezes beiram o nonsense, sentimos profunda empatia pela personagem e desejamos que ela saia de todos os enroscos em que se meteu.
Até a metade do enredo, quase não dá pra perceber que é um filme do Lars. Depois, a coisa toda vai ladeira abaixo, como sempre, e eu pergunto: o que pode mais se identificar do diretor, além de traços de sua crueza diante do mundo?
Dançando no Escuro foi lançado como uma crítica aos Estados Unidos e a tudo o que ele representa. Nada de novo sob o sol. Mas o que mais me incomodou ao rever este filme foi me deparar com uma série de pesquisas sobre o incansável trabalho de crítica de Lars Von Trier versus uma manifestação de Björk em 2017, diante da #metoo, na qual ela descreve sua experiência de assédio “com um diretor dinamarquês”.
Não é novidade que principalmente após os escândalos todos que surgiram com a subida da hashtag a indústria cinematográfica passou a colocar mais o foco na questão. Não por empatia, mas por necessidade. Ainda existe um longo caminho a trilhar no que diz respeito às reflexões que podem gerar casos como esses, principalmente em se tratando de grandes produções com uma grande quantidade de mulheres trabalhando nelas.
Lars não é nem um pouco flor que se cheire. Tampouco são seus filmes. Reviver momentos complexos é reviver questões polêmicas. Mas uma coisa é certa: Björk é a alma do longa-metragem e somente por causa de sua sensibilidade e atuação singela, Dançando no Escuro é um resultado muito maior do que poderia ter sido.
O trabalho de som de Lars Von Trier é abordado no curso de Introdução à Linguagem Cinematográfica ministrado pelo professor Donny Correia. Mais informações no link abaixo.
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