Por Daniel Couto

Costuma-se dizer que um filme é escrito diversas vezes em seu processo de produção: primeiro na etapa de roteiro, depois na captação e, é claro, no processo de montagem. Sendo a montagem a “escrita final” de uma obra, é de se esperar que a relação entre diretor e montador seja de extrema harmonia, mas também de bons embates para decidir os rumos que uma história pode tomar dentro da ilha de edição. Em se tratando do cinema peculiar de Quentin Tarantino, vale aqui pensarmos alguns aspectos desta relação em Era Uma vez… em Hollywood (2019).

Depois de uma parceria de mais de 20 anos com a montadora Sally Menke, falecida em 2010 e responsável pela montagem da maioria dos filmes do diretor – de Cães de Aluguel (1992) a Bastardos Inglórios (2009) –  quem assina a montagem dos últimos três longas de Tarantino é Fred Raskin (A.C.E). Raskin foi assistente de montagem de Sally em filmes como Kill Bill vol.1 (2003) e Kill Bill vol. 2(2004).

De assistente de Sally a montador “oficial” de um dos diretores mais icônicos da Hollywood contemporânea, Raskin conta em entrevista à Slant Magazine que seu maior medo ao fazer seu primeiro trabalho com Tarantino era “não ser tão rápido e talentoso o suficiente quanto Sally”.

(Tarantino costumava pedir aos atores de seus filmes para dizer “Oi, Sally!” durante as gravações, como forma de motivar a montadora.)

O desafio do montador Fred Raskin

Pois bem. Após provar seu valor no aclamado Django Livre (2012) e em Os Oito Odiados (2015), o desafio mais recente de Raskin ao lado do diretor foi na montagem do longa Era uma vez… em Hollywood.

Se a cada filme a montagem apresentava um novo desafio, a proposta de Era uma vez… em Hollywood (2019), proporcionou ao montador e à equipe um trabalho um pouco diferente do qual estavam habituados.

Ao apresentar um Tarantino mais “calmo” – ao menos nos dois primeiros terços do filme – a montagem de Era uma vez… em Hollywood entrega um ritmo próprio, seja para ambientar os últimos anos do até então consolidado modelo de estúdio de Hollywood, seja para transitar entre os diferentes enredos que cada personagem carrega, sem deixar que os mesmos se percam até a convergência final. Tudo isso de uma forma, muitas vezes, sem linearidade.

Fato é que em Era uma vez… em Hollywood o trabalho do montador fica mais visível na escolha da montagem dos diferentes planos oferecidos pela cinematografia e outros aspectos que nos convém abordar aqui.

Estes planos, muitas vezes, são extremamente longos. Dessa forma, nos ajudam a imergir na atmosfera do filme e em cada detalhe do Design de Produção (assinado por Barbara Ling e Nancy Haigh) criado para a obra.

Os grandes letreiros das diversas salas de cinema, a arquitetura da época… A montagem é assertiva em oferecer ao espectador tempo suficiente para assimilação destes elementos, sem deixar a peteca cair ao pularmos de uma situação para outra ao decorrer do filme. Em alguns aspectos, podemos dizer que a variação entre diferentes planos da mesma situação se apresenta como elemento, senão “novo”, ao menos diferente do que os filmes de Tarantino costumava apresentar até então.

Barbara Ling e Nancy Haigh receberam a estatueta de Melhor Design de Produção para Era uma vez… em Hollywood, no Oscar 2020 

Era uma vez… em Hollywood e o contexto histórico

É válido ressaltar que o momento histórico em que se passa a trama, o fim dos anos 60, se caracteriza pelo advento de novas tecnologias (como o som direto e câmeras mais compactas) que influenciaram diretamente o modo de fazer cinema pelo mundo.

Percebemos essa diversidade nas longas tomadas dos passeios de carro por Los Angeles que, ora permite ao espectador um passeio junto aos personagens (fixando a câmera no banco de trás do carro), ora o faz contemplar a atmosfera visual do filme (quando a grua do cameracar enquadra o carro e o personagem em um plano conjunto com as ruas da cidade).

Também não são poucas as sequências que se iniciam com planos de grua e outros movimentos de câmera, nos dando indícios de  como o diretor tentou reproduzir as novas possibilidades que cineastas usavam naquela época.

(Cliff Booth dirige pelas ruas de L.A em Era uma vez… em Hollywood)

Montagem e Trilha Sonora em Era uma vez… em Hollywood

A trilha sonora também é outro ponto muito bem trabalhado nos filmes de Tarantino e em Era uma vez… em Hollywood não poderia ser diferente. O filme é repleto de músicas e “sintonias de emissoras de rádio” que ajudam a ambientar ainda mais essa memória afetiva que o diretor tenta trazer em tela.

Além de cinéfilo, Tarantino é um ávido consumidor de diferentes estilos musicais (reza a lenda que em sua casa há um cômodo dedicado a acomodar sua enorme coleção de discos de vinis). Ok. Mas como isso influencia na montagem do filme?

Ora, música boa é um prato cheio para o montador. Como o próprio Fred Raskin revela em entrevista ao canal Film Courage, durante o processo de seleção das trilhas acontece o que ele e o próprio Tarantino gostam de chamar de “Magic Sync” (ou sincronia mágica).

Ao se testar diferentes músicas que não foram compostas originalmente para o filme, muitas delas se encaixam “magicamente” ao corte das cenas, sendo necessários pouquíssimos ajustes para que a trilha dite o ritmo e tom da cena obtendo um montagem quase que on-the-beat.

E se a escolha de planos e trilhas figuram nas decisões, digamos, mais agradáveis para montador e diretor, por outro lado, a etapa  de montagem carrega o difícil papel de cortar diálogos e até cenas inteiras. Se tratando de um filme de quase 3 horas de duração, certamente boa parte do material foi deixada de fora do corte final. Tarefa difícil para sintetizar diálogos, sublinhar trechos importantes do roteiro, dar ritmo ao filme… tudo isso sob o olhar rigoroso de Quentin Tarantino.

Sendo assim, não podemos negar que a montagem de um filme é toda feita através da tomada de decisões. Em Era uma vez… em Hollywood felizmente cinematografia, design de produção, o excelente roteiro de Tarantino e, claro, as ótimas atuações, trabalham em conjunto de forma a possibilitar ao processo de montagem um rico material que leva o espectador ao suspense, à contemplação, aos risos e, principalmente, a uma boa história.

A montagem de Era uma vez… em Hollywood é abordada em detalhes no curso Introdução à Montagem ministrado pelo professor Daniel Couto. Mais informações no link abaixo.

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