É algo raro de acontecer, mas dessa vez abordarei aqui uma obra que não é um filme. Mas poderia ser. Lançada em outubro de 2020, I Told Sunset About You (ou Eu falei de você para o pôr do sol, em uma tradução livre) é uma série tailandesa que conta com duas partes com cinco episódios cada e um curta e acompanha a história de amor e amadurecimento dos adolescentes Teh e Oh-aew na belíssima Phuket. Para quem não acompanha esse mundinho das séries asiáticas – fortemente puxado pelos famosos “doramas”, como as produções sul-coreanas ficaram popularmente conhecidas – ITSAY parece algo completamente aleatório de se abordar, especialmente em um portal cujo foco é cinema. No entanto, acreditem quando digo que essa produção merece muito mais reconhecimento do que já alcançou. Prova disso é que desde que eu a assisti, venho cozinhando a ideia de escrever um texto a respeito. Afinal, mais do que falar sobre cinema, o Cinemascope é também um veículo para apresentar boas obras que às vezes estão escondidas por aí. Pois bem, vamos lá.

Em I Told Sunset About You, que é a primeira parte e a qual darei mais foco aqui, acompanhamos os jovens Teh e Oh-aew em seu último ano do Ensino Médio. Vivendo na ilha de Phuket, ambos sonham em estudar artes cênicas em grandes universidades de Bangkok. Melhores amigos de infância, uma briga os afastou por anos e fez com que a relação ficasse estremecida. Eles acabam por se reencontrar nas aulas de reforço de mandarim, algo mandatório para a admissão universitária. Começando como rivais, eles acabam se reaproximando e reconstruindo a sua relação quando Teh, cuja mãe é chinesa, passa a ajudar Oh-aew. Nessa amizade restaurada, eles começam a se aproximar e desenvolver sentimentos mais profundos um pelo outro, o que causa confusão – especialmente para Teh – e gera novos conflitos entre os garotos.

Aos poucos, acompanhamos o desenvolvimento pessoal e do relacionamento entre Teh e Oh-aew e seus conflitos

Ao longo de cada episódio, que têm em média uma hora de duração, vamos acompanhando o começo da amizade deles ainda durante a infância até seus conflitos internos e entre si na adolescência. A fórmula de ITSAY não tem segredo: trata-se de um coming-of-age, uma clássica história de duas pessoas tentando compreender seu papel no mundo e quem são e, no meio disso, há um romance. A questão é a maneira com a qual esse plot, que poderia se transformar em algo corriqueiro e caricato, é conduzido pelo diretor Naruebet Kuno.

Cada momento aborda essa passagem da adolescência para o início da vida adulta com delicadeza e cuidado, guiandoo o espectador e envolvendo de uma forma que você passa a se sentir um pouquinho parte da história. O desenvolvimento do romance também é feito de uma maneira leve e natural. Não temos aqui cenas exageradas, fora da realidade ou constrangedoras. Cada parte é um mergulho na alma de dois rapazes que estão tentando se entender e entender quem são em meio a um período naturalmente estressante.

Se Oh-aew parece mais confortável com seus sentimentos, Teh entra em conflito, o que acaba por provocar atritos entre ambos. Apesar de se centralizar em um romance, a série fala muito sobre encontrar sua própria identidade e se aceitar. Sem exagerar no drama, ela nos entrega um retrato honesto de uma história que poderia ser de qualquer um. Além de um roteiro sério e uma boa condução na direção, muito do êxito em cena vem do talento dos jovens atores Putthipong “Billkin” Assaratanakul, que interpreta Teh, e Krit “PP” Amnuaydechkorn, o Oh-aew. Com poucos trabalhos no currículo, é admirável a entrega de ambos durante as cenas. É possível sentir as dores, medos e alegrias dos personagens e a tensão entre os dois nitidamente. Dois destaques, para mim, estão em uma cena em que Oh-aew se olha no espelho com um sutiã tentando compreender por que seu amor não pode ser correspondido – já que Teh leva algum tempo para entender seus sentimentos e sexualidade – e o simbolismo que aquela peça traz e o momento em que, em uma tentativa de recuperar o vínculo com Oh-aew, Teh age impulsivamente e precisa lidar com as consequências disso, deixando toda sua dor se esvair em cima de um caderno rasgado que tem um significado especial para eles.

A parte técnica da série também é digna de nota. No título do texto me referi à experiência cinematográfica que ITSAY nos proporciona e não é exagero. A fotografia, que aproveita os cenários deslumbrantes da cidade onde se passa, é belíssima em todos os momentos, nos ajudando a mergulhar ainda mais no universo da história. A escolha dos tons predominante quentes – algo que, aliás, muda na segunda parte, quando a produção abraça cores mais frias – se conecta com perfeição à cinematografia. Também é preciso ressaltar a trilha sonora*. Mesclado entre canções originais gravadas também pelos atores e instrumentais, a trilha é inserida nos momentos certos, ajudando a equilibrar o tom e contribuindo para o bom desenvolvimento da trama. Não seria muito dizer que acompanhar um dos episódios em uma tela de cinema deve ser uma experiência muito rica. Ouso dizer que o projeto tinha tecnicamente tudo para ser transportado para esse formato, mas seu ritmo e desenvolvimento pediam para que fosse série. E que bom que foi.

Entre uma parte e outra, e também como uma forma de divulgar Phuket e atrair o turismo para o local, o público conta com um curta de 14 minutos chamado Last Twilight in Phuket  (Último crepúsculo em Phuket, literalmente). Nele, vemos o agora casal Teh e Oh se preparando para a partida para a universidade e aproveitando seus últimos dias em sua cidade natal. Enquanto Teh está animado e ansioso, Oh sente-se receoso de perder aquilo que lhe é familiar e um tanto melancólico. Enquanto vemos como eles aproveitam essas últimas horas, temos a chance de explorar alguns pontos da cidade e relembrar os cenários que foram fundamentais na construção desse romance. Com uma fotografia igualmente rica e uma trilha simples, porém, emocionante, que fazemos a passagem para a segunda e última parte da série. Em I Promised You the Moon (Te prometi a lua, em tradução livre) acompanhamos Teh e Oh-aew em sua vida universitária em Bangkok e o processo de adaptação a ela. Estudando em locais diferentes, eles precisam agora enfrentar o começo da vida adulta e suas dificuldades, incluindo a saudade de casa, a inserção de novos amigos e o amadurecimento tanto deles quanto do relacionamento.

Dirigida por Tossaphon Riantong, a segunda parte tem um tom mais adulto, seguindo seus personagens. Como eu mencionei, a escolha de cores se volta para uma cartela mais fria, o que remete muito à solidão em meio a uma cidade grande e desconhecida e aos obstáculos que Teh e Oh enfrentam como casal. Entre a dificuldade de se enturmar e questões como escolhas profissionais e paixões, temos aqui conflitos diferentes, mas igualmente importantes. Apesar da mudança de cenário e diretor, o essencial da série permanece: no fundo, é sobre ser humano e todos os conflitos que isso envolve, entre eles, aqueles ligados a relacionamentos românticos.

Não vou me estender muito sobre ela porque acredito que pode estragar a experiência. Caso você procure saber mais e se depare com algum spoiler desagradável pelo caminho, digo com segurança: assista, você não irá se arrepender. A segunda parte causa incômodo algumas vezes, nos irritamos com os personagens e por alguns momentos pode até parecer que “estragaram” aquela série que conquistou nosso coração, mas não. Continua fiel à premissa: falar sobre relações humanas e conflitos existenciais. Se na vida real nem sempre (ou quase nunca) tudo são flores, na ficção também não é.

Uma mudança dentro do universo BL tailandês

Quando falo sobre a série ter dado um novo tom às produções LGBTQIA+ tailandesas, me refiro muito especificamente ao universo “boys love” ou “BL”, como é conhecido esse gênero que aborda em sua maioria romances adolescentes/jovem adultos gays. É comum dentre essas produções encontrar uma série de estereótipos e maneiras bastante incômodas de condução de narrativa (como a clássica “eu não sou gay, gosto especificamente desse menino”). Em muitos casos, falta profundidade tanto no roteiro quanto nos personagens e acabamos vendo uma repetição sem fim voltada para agradar um público majoritariamente feminino e heterossexual. Em ITSAY, nos desprendemos disso. Como mencionei antes, há complexidade tanto nas relações apresentadas quanto nos personagens e seus conflitos. As cenas não existem somente para agradar determinado grupo de espectadores, mas para compor a história e nos levar a conhecer melhor quem são aquelas pessoas.

Muito bem recebido pelo público e crítica, ITSAY trouxe novos ares aos “BL” tailandeses, rendendo comparações com “Me Chame Pelo seu Nome”

Aqui não temos momentos “estranhos” ou que nos dão “vergonha alheia” pelo comportamento quase teatral dos personagens. Ao acompanhar Teh, Oh-aew e aqueles que vivem ao seu redor acompanhamos também conflitos que todos temos ou tivemos, relembramos a nossa própria adolescência (para quem, assim como eu, já está bem longe dela), observamos dinâmicas familiares e o impacto que as construções sociais e culturais têm no desenvolvimento da identidade de cada um. É sobre um romance, mas é também sobre um menino tentando orgulhar os pais, uma mãe solo imigrante que busca proporcionar o melhor para os seus filhos, uma garota confusa com as oscilações emocionais do amigo. É sobre a vida, simples. Diferentemente de outras obras, sinto que o que se vê em ITSAY é algo que poderíamos ver tranquilamente na vida real. É cru, sincero e bonito

Não à toa, a série vem levando diversos prêmios. O mais recente deles, o de Drama Internacional do Ano no Seoul International Drama Awards, em 2021, mostra como a obra rompeu sua própria bolha, sendo reconhecida em uma indústria que, apesar de ter desenvolvido muitos bons conteúdos com temática LGBTQIA+ nos últimos anos, ainda é bastante conservadora. Entre o público tailandês, a produção chegou a ser comparada com o longa Me Chame pelo Seu Nome e a crítica local o considerou um divisor de águas para o gênero. Infelizmente, para o público internacional o acesso à série é um pouco mais difícil. Para o público brasileiro, então, impossível. Teoricamente disponível no Vimeo, acho que isso não se aplica à nossa parte do mundo. Infelizmente – e digo isso porque é uma pena algo tão bem feito ser tão difícil de achar – precisei assistir por um site de fansubs. Espero, porém, que a popularidade dessa e outras produções que seguem a mesma linha de qualidade faça com que elas ganhem uma melhor distribuição internacional e que possamos encontrá-las facilmente em plataformas como Netflix, Amazon Prime ou até mesmo no Viki.

Essa dificuldade para acessar conteúdos de alguns países me remete ao que Bong Joon-Ho disse ao aceitar seu prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Globo de Ouro de 2020: “uma vez superada a barreira de dois centímetros das legendas, vocês conhecerão muitos filmes incríveis”. Amplio dizendo que é preciso superar também o preconceito e estranhamento que ainda temos quando nos deparamos com produções cujo formato ou idioma parecem tão diferentes do nosso. A riqueza do audiovisual é justamente essa, poder conhecer novas experiências, diferentes daquelas com que estamos acostumados. Se superarmos as barreiras geográficas e de língua, encontraremos não somente filmes incríveis, mas uma gama enorme de obras maravilhosas que merecem ser valorizadas.

*De bônus, deixo aqui o clipe de Skyline. Cantada por Bilkin, ela é o tema de abertura da primeira parte e, além de contar com uma composição muito bonita, dá uma palhinha da qualidade técnica que eu tanto mencionei ao longo do texto:

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