Por Rafael Ferreira e Sttela Vasco
Corro meus olhos pela minha coleção de DVD’s e encontro este filme lançado em 2004, Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças, estranhamente não me lembro de tê-lo assistido; sou introduzido aos protagonistas, que por sinal acabam de se conhecer, o ilustrador caladão Joel Barish, (interpretado brilhantemente por Jim Carrey, num papel que difere completamente das suas comédias) e a tagarela Clementine Kruczynski (interpretada pela talentosa Kate Winslet). Poucos minutos depois o casal já está enamorado e o público já está imerso no filme, e então algo me atinge como um raio, um déjà vu, me parece que já conhecia este cara antes.
“Brilho Eterno” é um filme que precisa ser apreciado com calma e atenção. Assim como a própria memória, às vezes é confuso, misturando acontecimentos do presente e passado. A estrutura narrativa, apesar de indicada, pode causar certo incômodo em quem está pronto para um filme exatamente cronológico – se conhecem, se decepcionam, se apagam. A mente não é simples e assim e também não o é o amor, logo, tal linha, se seguida à exatidão, reduziria o filme à narração de um desencontro amoroso, tudo o que ele não é.
É preciso se desprender de certos pensamentos lógicos antes de embarcar no universo que Michel Gondry nos apresenta. Quão melhor seria se pudéssemos apagar alguém que nos magoou de nossas mentes? Toda a dor especialmente trazida com as recordações estaria acabada e todo o tempo dedicado ao “recolher os pedaços” seria gasto com outras coisas bem mais prazerosas. É o que Clementine acredita quando passa pelo procedimento, é o que Joel busca ao se submeter ao mesmo.
Joel refaz todo um trajeto para remover algo doloroso de sua memória e leva, junto dele, o espectador. Acompanhamos cada momento e, conseqüentemente, cada sensação. A equipe de efeitos visuais inicia seu trabalho para traduzir a perda de tais lembranças, literalmente apagando e alterando cenários e certos detalhes durante o filme. Muitas das cenas mais bizarras e fascinantes foram feitas à moda antiga, na frente das câmeras, com alguma porta escondida, uma troca rápida de roupa, na sala de edição, na iluminação, truques de perspectiva forçada, os efeitos visuais foram muito limitados, mas sempre divertidos de se observar: rostos, móveis, títulos de livros na estante, a comida nos pratos, símbolos nas placas incluindo a sua haste, e até mesmo há uma cena em que a perna de Clementine é deletada – conseguiu ver isto? Assista ao filme novamente com mais atenção. Sempre que assisto eu percebo um detalhe que havia passado despercebido.
Durante o procedimento, Joel encontra uma lembrança que o faz perceber por que gostava de Clementine e o quão precioso foi aquele momento, algo que merecia ser guardado. Por mais doloroso que tenha sido seu relacionamento com Clementine, são acontecimentos como estes, bons ou ruins, que nos moldam, nos ajudam a amadurecer. A partir de então, o filme toma outro rumo, Joel e Clementine irão se unir para preservar as lembranças de seu amor. Nos angustiamos com suas escolhas e, posteriormente, com a sua luta frenética por evitar que o esquecimento de fato ocorra, algo por qual de certa forma todos passamos.
O roteirista Charlie Kaufman foi generoso o bastante para nos ajudar a situarmos cronologicamente no tempo fílmico, basta observar as cores no cabelo de Clementine, que por sua vez combinam com sua personalidade. Quando ela e Joel se conhecem, seu cabelo apresenta uma coloração verde ácido, com a raiz sem cor; antes do primeiro encontro, ela já o pintou de vermelho vivo, a cor da paixão, a cor dos dias felizes em seu relacionamento, vale lembrar que é a Clementine de cabelo vermelho que dá a Joel a idéia de fugir dos “caras que apagam a memória”; quando ela pinta de laranja, ganha o apelido de Tangerina, neste contexto surge como um vermelho desbotado, sem vida, tudo ainda parece bem, mas os problemas no relacionamento começam a surgir, ou em outra interpretação, poderia sugerir que agora que passou da fase da primeira paixão, está pronta para firmar a relação com Joel e ter um bebê, mas esta decisão só leva o casal a outra discussão; após o rompimento, ela pinta seu cabelo de “ruína azul”, como ela mesma o chama, uma cor fria para acentuar seu estado mais melancólico.
Apesar do clima dramático do filme e dos trailers mostrarem o contrário, na Itália ele foi erroneamente traduzido como Se mi lasci ti cancello (Se me deixar, te apago), levando grande parte do público a esperar uma comédia e saindo decepcionada ao sair do cinema. A tradução correta do título deveria ser L’eterno splendore d’una mente immacolata, uma frase tirada do poema De Eloisa Para Abelard, de Alexander Pope em 1717. O poema conta a história de amor ilícito de Eloisa, e seu casamento secreto com Pierre Abelard, o professor e filósofo mais popular de Paris, e a vingança executada pela família da jovem. Caso tenha se interessado por esta história, recomendo que assista ao filme Em Nome De Deus (1988), de Clive Donner.
Apesar de todas as brigas do casal, não dá pra negar que os dois têm uma ótima química, um completa o outro, Joel sente que encontrou o amor de sua vida, alguém que expressa um lado seu que está enterrado bem fundo dentro de si, mas ele não consegue expressar por ser muito retraído, seus desenhos mostram este interior selvagem, e Clementine é a manifestação externa disso, ela é a loucura interior que ele não tem coragem de libertar.
Após anos sem assistir este filme, me dou conta do motivo que me fez encostá-lo, criando poeira na minha coleção, pois o mesmo me faz lembrar de um determinado momento turbulento em minha vida e cicatrizes que demoraram para se curar. Hoje, mais velho, mais maduro, consigo perceber o quanto aquele momento foi importante para mim, pois me ajudou a compor quem sou hoje, me ajudou na tomada de decisões. A partir de agora, meu DVD de Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças ganhará seu lugar de destaque na minha estante, ao lado de outros filmes que também me marcaram como Onde Vivem Os Monstros e Fonte Da Vida.