Por Rafael Ferreira
Lembro-me de uma de minhas idas ao cinema em 2007 e me deparar com o seguinte teaser:
A primeira coisa que me veio à cabeça foi: “Caça níqueis!”. Nada mais do que reciclar os personagens do filme anterior, numa trama sem noção, agora com o advento do cinema 3D para jogar coisas no espectador. Mesmo sem muita expectativa eu fui conferir quando o filme chegou aos cinemas. Nos primeiros cinco minutos eu ainda estava convencido, cheio de piadas sobre comida, mas depois disso, para minha surpresa – novamente – eu vi um filme forte e emocionante, novamente lidando com problemas familiares de uma maneira madura.
Nesta seqüência, enquanto protege os indefesos moradores da região, Po encontra um símbolo que pode estar ligado ao seu passado, ao conversar com seu pai a respeito, ele descobre que foi adotado – grande surpresa! – Enquanto Po lida com seus problemas familiares, Shifu recebe a informação de que há uma ameaça à Gongmen City, algo tão poderoso que pode acabar com o kung fu, cabe a Po e aos Cinco Furiosos viajar até lá para enfrentar o terrível Lord Shen, e revelar o mistério que encobre o passado de Po.
É sempre bom revisitar certos personagens, fico feliz em ver que os Cinco Furiosos estão mais enturmados com Po e o aceitaram em seu grupo (será que teremos de chamá-los de “Seis Furiosos” ou os “Cinco Furiosos e o Dragão Guerreiro”?), eles formam aquela típica família disfuncional onde cada personagem traz uma qualidade ao grupo. Macaco é meio calado, mas brincalhão, um cara bem na dele; Louva-a-Deus é o pequenininho que luta com intensidade; Garça é prestativo, como um intermediário entre Macaco e Louva-a-Deus; Víbora é esguia e letal, mas tem um lado doce e gentil, a pacificadora do grupo; e Tigresa é a líder do grupo, forte, poderosa, durona, direta – mesmas características do estilo de kung fu ao qual ela representa, fato é que essas qualidades que mencionei sobre cada personagem são próprios de seus respectivos estilos de kung fu – mas ao mesmo tempo com um lado humano que este filme explora na dosagem certa. Tigresa é uma pessoa de ação, por isso ao invés de falar sobre seus sentimentos, ela demonstra fisicamente, o abraço que ela dá em Po já diz tudo o que ela sente com relação ao seu novo amigo. Este abraço é totalmente condizente com a sua personalidade, uma vez que nós vemos no filme anterior a forma rígida como ela foi criada.
Po adiciona uma dinâmica a esta família disfuncional, eles o enxergam como o irmão mais novo que os deixa constrangidos, porque mesmo sendo um Dragão Guerreiro, continua fazendo suas gracinhas. Ele é o mesmo Po que conhecemos e amamos, mas agora mais confiante e melhor no kung fu, pensando nisso eu consigo ver de onde vem o humor do filme, não são as gags, nem as situações, o verdadeiro humor vem do próprio personagem, Po tenta fazer algo “irado” como os heróis de ação, mas não consegue por ser desajeitado, ele não foi feito para isso, como podemos reparar na cena do “modo invisível”, ou na épica cena do “disco da destruição”, por vezes ele não consegue conter seu entusiasmo.
Como vimos no filme anterior, Shifu tem um arco no qual ele evolui de mestre-professor para um mestre espiritual como Oogway fora, e realmente o vemos seguindo os passos de seu mentor, até mesmo o cajado feito da madeira do Pessegueiro Sagrado da Sabedoria Divina foi restaurado, a próxima etapa em sua jornada é encontrar a paz interior através da meditação.
Outro personagem que revisitamos é o pai de Po, neste filme descobrimos que ele não é o pai biológico de Po, um dos conflitos que leva o filme adiante. Ao saber disso, Po começa a se questionar quem ele é de verdade, de onde ele veio, uma dúvida pertinente já que não existem outros pandas neste universo. Além disso, descobrimos também o nome deste que o criou, Sr. Ping, portanto nosso protagonista se chama Po Ping, que traduz para “paz preciosa”, faz sentido, pois o panda é reconhecido como um símbolo de paz na China. É admirável notar que o Sr. Ping seguira o exemplo de Po, finalmente teve a coragem de seguir seu sonho de juventude de fazer tofu, e já que ele está inovando, por que não ir mais além? Assim que Po entra no restaurante do seu pai, notamos que o local foi reformado (Tai Lung quebrara o arco da entrada), e há diversos pôsteres com Po como o garoto propaganda, uma faceta do personagem que eu não conhecia, Sr. Ping, o rei do marketing.
Além destes personagens que já conhecíamos Kung Fu Panda 2 nos apresenta outros, Mestre Boi Toró, Mestre Rino Trovão (filho do lendário Rino Voador, cuja armadura vemos Po admirar filme anterior), e o Mestre Croc, interpretado pelo mestre das artes marciais em pessoa, Jean-Claude Van Damme, mesmo com os braços e pernas curtas, seu personagem consegue fazer o famoso spaccata, e usa sua cauda para compensar esta limitação. Mesmo que sua participação neste filme seja pequena, existe uma relação entre o personagem que protege a Cidade de Gongmen não protegendo a Cidade de Gongmen, em 1994, tanto a carreira como a vida pessoal de Van Damme entraram em decadência, uma fase em sua vida em que o próprio perdeu a fé nas artes marciais.
Outra lenda das artes marciais que interpreta um personagem em Kung Fu Panda 2 é Michelle Yeoh (de O Tigre E O Dragão, aqui ela encontra a Tigresa e o Dragão Guerreiro. Essa vai para o hall da fama de piores piadas) que interpreta a Falamacia, uma espécie de Oráculo que prevê a queda de Shen por um guerreiro de preto e branco, resultando no genocídio dos pandas, ela se sente responsável por esta tragédia, e carrega este peso em sua consciência, da mesma forma que seus grandes chifres pesam sobre ela. Sua visão me faz lembrar de algo que Oogway disse no filme anterior e constatado mais uma vez neste: “Uma pessoa encontra seu destino no caminho que ele toma para evitá-lo”.
Este é um motivo recorrente em histórias bíblicas, mitos e lendas, como na mitologia grega Acrísio aprisionou sua filha num baú e o jogou ao mar após um oráculo prever que ele seria assassinado pelo seu neto, ela deu a luz a Perseu, que anos mais tarde acabou cumprindo a profecia; da mesma forma acontece na história de Moisés, na qual o Faraó mandou matar todos os bebês do sexo masculino, com medo de uma futura revolta, mas um bebê foi encontrado no Rio Nilo, adotado pela filha do Faraó e anos mais tarde a tal revolta aconteceu e Moisés libertou os hebreus e os levou à terra prometida; e não nos esqueçamos de Herodes, após saber sobre o recém-nascido rei dos judeus, mandou matar centenas de crianças com medo de que um deles viesse a tomar-lhe o trono. Não estou querendo comparar Po Ping com Jesus Cristo ou Moisés, apenas ressaltando uma semelhança em suas vidas.
Se o vilão do primeiro filme incorporava a força bruta, neste filme os realizadores seguiram outra abordagem, Lorde Shen (interpretado por Gary Oldman) é um personagem ameaçador de um jeito intelectual, com sua língua afiada ele provoca Po, destrói-o emocionalmente, e ganha poder com isso, o que torna o desafio mais difícil para o nosso herói quando este não consegue compreender o vilão. Shen é um Pavão Branco Real, uma das espécies mais magníficas da Terra, e seu design é um equilíbrio entre elegância e perversidade, nós o ouvimos andar com seus movimentos graciosos intimidando com sua armadura de metal nos pés, esperando que a qualquer momento ele pode apontar uma arma para você, ou feri-lo com palavras. Na cultura chinesa, o branco é a cor da morte, mais uma característica que o estabelece como vilão. Gary Oldman transmite toda a intensidade do personagem com a sua voz, eu diria que este é um dos vilões mais interessantes vividos pelo ator, e para completar, sempre que em cena, não conseguimos tirar os olhos de Shen, isso porque a diretora sul coreana Jennifer Yuh Nelson decidiu enquadrá-lo centralizado na maioria das cenas, impondo que o olhar do público deve estar sempre no pavão.
Para quem se interessa pela cultura e arquitetura chinesa, este filme é um prato cheio. Em sua jornada Po precisa sair da sua zona de conforto, e isso nos leva à cidade de Gongmen, muito semelhante a Pingyao, cidade tradicional chinesa da dinastia Han, cuja complexidade podemos ver durante todo o filme, mas com uma dimensão maior na cena de perseguição de Jinriquixás, que a propósito, ainda são usados em Pingyao e Pequim. Os becos confusos e estreitos, os mercados lotados, são traços da arquitetura desta cidade reproduzidos no filme. A torre dos império dos pavões também tem seu equivalente no mundo real, inspirado na Yellow Crane Tower em Wuhan, e o Pavilhão do Príncipe Teng em Jiangxi, duas das quatro grandes torres da China. Como podemos ver, a torre é cercada por um paredão, onde o pátio interno possui o mínimo de detalhes possíveis (sem jardins ou arbustos) para evitar que pessoas mal intencionadas possam se esconder, a defesa do palácio também conta com quatro torres ao seu redor. O final do filme se passa no canal da cidade, também busca inspiração na realidade, os canais estreitos cercados por arquitetura clássica chinesa da cidade de Fenghuang, cujo nome é uma referência a pássaros mitológicos, o equivalente à fênix na mitologia ocidental, diz a lenda local, quando dois desses pássaros sobrevoam a cidade, eles se recusam a ir embora, criando um espetáculo de fogo no céu, totalmente relacionado ao terceiro ato do filme. Outra figura mitológica que podemos identificar em Kung Fu Panda 2 é o Qilin, representado na fantasia que Po e os Cinco usam durante o “modo invisível”. Esta criatura é um símbolo de caridade, generosidade, e respeito à vida, nunca tirando a vida de um inocente, ao contrário, protege-o de qualquer ameaça. Segundo o mito, a aparição do Qilin coincide com a chegada de um grande sábio.
Um dos motivos que faz com que este filme e seu antecessor se destaquem entre os demais longas animados do circuito são as escolhas da direção, todas ajudam a contar melhor sua história, todas com um propósito, todas passam uma sensação. Tome por exemplo a cena em que Po acorda de um sonho ruim no qual seus pais o substituíram por um rabanete, sua mente perturbada busca a paz interior, esta cena se passa durante a noite onde a cor azul (cor negativa) predomina, com névoas representando esta confusão (que diminuem conforme ele coloca seus sentimentos pra fora, conversando com a pessoa mais durona que ele conhece), e a cena se passa no meio do rio, como se dissesse que Po está numa situação da qual não pode fugir, mas deve seguir em frente.
Novamente a temática das cores está presente, o dourado como um símbolo do herói aparece em várias cenas em que Po está presente, iniciando pela sua apresentação neste filme, em que ele coloca 38 bolinhos de feijão na boca (40 bolinhos); o flashback em que o Sr. Ping conta como encontrou o bebê Po em uma caixa de rabanetes, atribuindo a qualidade de herói a este ganso que dedicou sua vida a cuidar do indefeso panda; o céu dourado quando Po se despede de seu pai, outra coisa que podemos observar nesta cena é o Palácio de Jade enquadrado por cima do ombro direito de Po, atribuindo uma carga de responsabilidade para o panda; o momento em que nossos heróis chegam a Gongmen City, sob um céu dourado, refletindo na excitação de Po com sua chegada triunfal, e como um símbolo de esperança para a cidade.
Lembremos também de quando Po e os Cinco Furiosos estão a caminho do seu destino, atravessando um deserto. Observe que neste mesmo momento a tela se divide mostrando Po sob um fundo dourado, e Shen cercado de vermelho (cor do poder e do fogo), e então nos tocamos de que o pavão está sempre envolto em vermelho, do momento em que ele rende a cidade de Gongmen, às cenas na fábrica de canhões, ao próprio palácio, onde podemos observar várias referências a isto em seu interior, como as colunas com detalhes que lembram o fogo, e os círculos nas paredes que lembram os símbolos na cauda de Shen, que por sua vez parecem olhos, criando a sensação de que Po e sua turma estão vigiados por todos os ângulos; os olhos vermelhos também são vistos nas árvores quando a mãe de Po está fugindo da aldeia em chamas. Enfim, Po e Shen são opostos em todos os sentidos, se Shen consegue seus objetivos através do fogo, manipulando a invenção de seus pais para uma finalidade destrutiva – além do extermínio na aldeia dos pandas, a fabricação do metal, os demônios que cospem fogo, a destruição do seu palácio, etc. –, Po busca refúgio na água, é na chuva que ele encontra a paz interior, é o rio que o leva até a Falamacia, e a batalha final é travada com nosso herói cercado de água.
Assim como filme o anterior, este também inicia com uma seqüência em animação tradicional, porém há uma diferença, para se obter um caráter de lenda, os realizadores optaram por fazer a abertura como um teatro de sombras chinês, criado na dinastia Han. A animação é um pouco limitada, até parece que os personagens são recortados e só se movem para a esquerda ou para a direita, com um pivô preso em suas cabeças, movimentado por mãos humanas, mas cumprem o seu papel de contar a lenda.
Se a queda de Shen é contada dessa forma, o momento fatídico da vida de Po também é contado como uma animação tradicional, porém, bem mais sofisticada do que a técnica usada nos teatros de sombras. Se lembrarmos do primeiro Kung Fu Panda, veremos que a introdução com o sonho de Po é realizada com esta técnica, portanto, é assim que Po enxerga o mundo, e somente ele tem esta peculiaridade, pois o flashback da Tigresa quando criança é em animação 3D, o flashback do Sr. Ping encontrando o bebê panda na caixa também é em 3D, mas os flashes da memória de Po são em 2D, como se fosse uma memória mascarada, da qual ele não tem muita certeza do que é, até o momento em que ele encontra a paz interior, destrava a verdadeira memória e entende claramente o que aconteceu, só então a imagem chapada ganha tridimensionalidade. Esta linda cena consegue mesclar muito bem as técnicas 2D e 3D, depois de descobrir o que realmente aconteceu, Falamacia o conforta dizendo algo muito semelhante ao que Po ouvira de seu pai quando descobrira que foi adotado: “Sua história pode não ter tido um começo feliz, mas isso não faz quem você é. É o resto da sua história, quem você escolhe ser.” Em seguida Po se lembra de vários momentos de sua vida, uma forma de explorar o tema da adoção no filme, mostrando que embora Po não tenha sido criado pelos seus progenitores (vale ressaltar que em momento algum no filme é dito “pai biológico” ou “pai adotivo”) ele contou com a ajuda de suas várias famílias, como o Sr. Ping, Mestre Shifu, e os Cinco Furiosos. Não sei por que, mas sempre tem alguém descascando uma cebola perto de mim quando eu vejo esta cena.
A frase da Falamacia não poderia estar mais certa, Po escolheu quem quer ser, traçou seu caminho, inspirou vários, e está realizando seus sonhos, como vemos que alguns planos deste filme são recriações da seqüência de sonho do filme anterior. Ele é um verdadeiro herói, que está disposto a estender a mão para seu oponente, como havia feito com Tai Lung, e o faz para Shen, basta este aceitar o fato de que “é preciso deixar o passado para trás. A única coisa que importa é o que você escolhe ser agora.” Mas como Shen não é tão compreensivo, esta batalha física e emocional acaba terminando mal para o pavão.
Segundo a diretora Jennifer Yuh Nelson, em Kung Fu Panda “nós aprendemos que heróis vêem em todos os formatos e tamanhos quando Po cumpriu seu destino e se tornou o Dragão Guerreiro.” Em Kung Fu Panda 2 “esta sina nos leva ao nosso destino, trazendo pessoas para a nossa vida que nos protegem e aquelas que nos desafiam, nos permitindo realizar todo nosso potencial.”
Este filme, assim como seu anterior, é um dos grandes acertos da Dreamworks, dialoga muito bem com o público adulto e infantil, sem pender para um lado, tem uma carga emocional que funciona muito melhor do que em vários filmes voltados somente para o público adulto. É difícil sair indiferente após assistir a um filme como este, que nos faz refletir sobre nossa própria vida, nosso passado, e aonde chegamos, da mesma forma pensamos sobre as pessoas que nos acompanham, família e amigos, e como várias dessas pessoas nos protegem, e outras desafiam, nos permitindo realizar nosso verdadeiro potencial.