Por Sttela Vasco
“Roubou a armadura de seu pai, fugiu de casa, fingiu ser um soldado, enganou o seu oficial comandante, desonrou o nosso exército, destruiu o meu palácio e… Salvou a vida de todos”.
Quando se fala sobre as princesas da Disney*, é comum pensarmos em figuras delicadas, que despertam com passarinhos e normalmente são salvas de alguma bruxa ou ser maléfico por um príncipe encantado. Poucas são as vezes em que lembramos de certa jovem corajosa que, indo contra toda a tradição e conservadorismo de seu país, decide salvar seu pai ao se passar por homem e se alistar no exército no lugar dele. Baseado na lenda chinesa de Hua Mulan, uma guerreira descrita no poema The Ballad of Mulan, o longa de 1998, dirigido por Tony Bancroft e Barry Cook, trouxe algo novo para o estúdio, com uma personagem principal que em nada se assemelha ao estereótipo de fragilidade e delicadeza comumente associado às princesas até então conhecidas.
A história se passa em uma China sendo invadida pelos mongóis – ou hunos, como são chamados na animação – o que faz com que o imperador decrete que um homem de cada família deve se alistar para o exército imperial. Ao se deparar com tal fato, a jovem Mulan passa a se angustiar com a ideia de seu pai, já idoso e ferido, ter de se alistar por ser o único homem da casa. Com isso, ela decide roubar a armadura dele e se apresentar em seu lugar, contando com um dragão enviado pelos espíritos de seus ancestrais e um grilo ”da sorte” como ajudantes em sua perigosa missão.
Antes de a guerra bater à porta da família Fa, a grande preocupação de todos era conseguir que Mulan encontrasse um marido e, assim, honrasse seu clã. Isso é apresentado ao público logo no início da animação. Em uma de suas canções mais memoráveis, Honrar a Todas Nós, o papel da mulher na sociedade em questão, além do comportamento dela esperado, é evidenciado. Trechos como “a moça vai trazer a grande honra ao seu lar, achando um bom par, com ele se casar” e “mas terá que ser bem calma, obediente e ter vigor. Com bons modos e com muito ardor, traz mais honra a todas nós” dão o tom do ambiente no qual Mulan está inserida.
A questão, porém, é que por mais que tentasse, ela nunca conseguiu se adequar ao que a sua sociedade exigia e esperava de uma mulher. Tal dificuldade é expressada antes mesmo da canção acima citada, quando a jovem precisa escrever uma cola no pulso sobre como se comportar perante a casamenteira. Além do fato de precisar fazer anotações para conseguir se enquadrar, tudo fica ainda mais claro quando Mulan age exatamente ao contrário do que está escrevendo. Ela anota “delicada”, por exemplo, enquanto mastiga um montinho de arroz de boca aberta.
A visita à casamenteira acaba sendo um fracasso e a jovem, que já possuía diversos questionamentos sobre si mesma, se vê perdida entre a vontade dos pais e quem ela realmente é. Tal questionamento deu origem a Imagem. Originalmente cantada por Christina Aguilera e com uma versão feita pela dupla Sandy & Junior no Brasil, a canção mostra Mulan perguntando a si mesma quem é a pessoa que ela vê refletida no espelho e quem ela gostaria de ser. Os animadores aproveitaram a sequência para fazer uma pequena homenagem a si próprios: quando a personagem se vê refletida nas pedras do templo da família, é possível ver uma sequência de escritos em chinês arcaico. Eles são, na verdade, os nomes dos artistas que participaram da obra.
Mulan abriu as portas do estúdio para longas como A Princesa e o Sapo, de 2009, Valente**, de 2012, e Frozen, de 2013, nos quais figuras femininas fortes, independentes e que lutam por algum objetivo maior, são protagonistas de narrativas que não têm medo de reinventar o modo de contar histórias ao estilo contos de fadas. Se antes as princesas e seus longas esboçavam tais traços, agora eles são expostos e muito mais bem trabalhados e é inegável a contribuição de Mulan para este feito. Sim, Merida causou furor ao competir contra seus pretendentes pela própria mão, mas antes tivemos Mulan chocando a nação ao se passar por homem, um crime com sentença de morte.
A jornada de Mulan em busca de si mesma e também para salvar seu pai, se inicia quando ela parte para o exército. Lá a garota se vê pressionada e encarando o fato de que ao menor deslize seu segredo pode ser exposto. Ao longo disso, ela vai se descobrindo, passando, como em toda autodescoberta, por provações e dificuldades, que aqui são redobradas por ela se encontrar em um ambiente totalmente proibido para uma mulher. É em sua partida para a guerra que Mulan é subestimada e confrontada com a realidade, porém, é também nela que ela começa a se encontrar e descobrir que não precisa se limitar ao que seus pais ou a sociedade dita como certo.
Mulan não apenas supera a si mesma no decorrer de Eu Não Vou Desistir de Nenhum, ela também enfrenta – e vence – o estereótipo de que mulheres não podem se igualar fisicamente aos homens. Iniciando a sequência aos tropeços e ficando sempre para trás, Mulan nos dá uma lição de persistência e força de vontade, mostrando às crianças e, principalmente, às meninas que conquistas se tratam de empenho e não gênero. Ao longo dos pouco mais de três minutos de duração da canção, a jovem ganha autoconfiança, supera medos, conquista o respeito e admiração de outros combatentes – e do general em si – e percebe que é capaz de contornar e vencer obstáculos tanto quanto ou melhor que seus colegas. De bônus, a sequência ainda nos mostra os três personagens mais ridicularizados do exército Yao, Ling e Chien Po, superando seus próprios limites junto a Mulan.
As músicas ajudam a construir boa parte da história de Mulan. Assim como a personagem que dá nome ao filme, elas vão trilhando um caminho de evolução e descoberta, pontuando os principais momentos e conquistas da jovem. Nos bastidores, a escolha do responsável para a composição e criação da trilha foi bastante turbulenta. Stephen Schwartz, que já havia trabalhado nas trilhas de Pocahontas e O Príncipe do Egito, da DreamWorks, foi inicialmente escalado para o projeto. Schwartz chegou a escrever três canções para o longa, porém, compromissos com o estúdio de Steven Spielberg e desavenças com o então presidente da Disney, Peter Schneider, fizeram com que ele deixasse Mulan. Matthew Wilder e David Zippel, então, foram chamados. A dupla é responsável por cinco canções, mas acabou não ficando como chefe do trabalho. Após especular muitos nomes, finalmente chegou-se à decisão de chamar Jerry Goldsmith, de Poltergeist e Instinto Fatal, para a composição. O trio final foi indicado a vários prêmios. Entre eles, o Oscar para Goldsmith, que acabou perdendo para Shakespeare Apaixonado e o Globo de Ouro, tanto para Jerry pela trilha sonora quanto para Wilder e Zippel por Imagem, porém, eles perderam para O Show de Truman e para The Prayer, de A Espada Mágica – A Lenda de Camelot, respectivamente.
Não apenas as músicas, mas a produção em si foi um desafio. Mulan demorou cinco anos para ficar pronto e levou a equipe a passar três semanas na China para observar costumes e tradições do país, além de fotografar locais que pudessem ser usados nas cenas. A história começou antes mesmo de a ideia do longa nascer. Em 1993, quatro anos após abrir suas portas, o estúdio de animações da Disney na Flórida já possuía inclinações para desenvolver projetos baseados na cultura asiática. Nesse período começou a ser esboçada a ideia de Mulan, quando um curta chamado China Doll, sobre uma garota chinesa oprimida que é levada para o Ocidente por um príncipe britânico, começa a ser desenvolvido. O autor de livros infantis Robert D. San Souci, consultor do estúdio, foi então convidado para acrescentar sua visão ao projeto, o que resultou em um manuscrito baseado no poema sobre Hua Mulan e unindo o mesmo ao esboço de China Doll.
A mudança de direção na história ocorreria mais vezes. A história de Mushu, o divertido dragãozinho que ajuda a heroína, faria parte de outra produção. Barry Cook, animador de efeitos especial de longa data na Disney que viria a dirigir Mulan, optou por unir os projetos ao perceber que a cultura chinesa também possuía dragões em suas histórias. O argumento do filme também se transformou conforme foi desenvolvido. Originalmente pensado como uma comédia romântica, Mulan seria sobre uma garota com estilo tomboy que está prometida em casamento a um homem que ela não conhece, Shang. No dia da cerimônia, a jovem decide fugir provocando um conflito na família. Insatisfeito com o enredo – e com o afastamento do mesmo da lenda que originou a história -, Chris Sanders, responsável pelo storyboard de O Rei Leão, pediu aos produtores que mudanças fossem feitas. Shang também não seria filho do general Li, porém, ficou decidido que essa seria uma maneira de ligar Mulan e ele, afinal, ambos tinham um relacionamento forte com os pais.
Apesar de todo o esforço, os chineses não gostaram tanto da obra. Um ano após sua estreia mundial, em 1994, e após desavenças entre a Disney e o governo chinês, o longa chegou ao país. O público, porém, achou Mulan muito ocidental, não se identificando tanto com a personagem e acusando a animação de se distanciar demais da lenda em si. Isso, no entanto, não abalou a arrecadação da obra. Com um orçamento de US$ 90 milhões, o longa faturou, no total mais de US$ 304 milhões. Em 2004, o filme ganhou uma sequência intitulada Mulan 2 – A Lenda Continua. Dirigida por Darrell Rooney e Lynne Southerland, a história traz Shang e Mulan se preparando para seu casamento enquanto são mandados para uma missão secreta na qual seus sentimentos são postos à prova. Lançado direto em DVD e com um roteiro mais fraco, não fez tanto sucesso quanto seu predecessor. Há rumores que uma versão live action deve ser feita em breve, assim como ocorreu com Cinderela e A Bela e a Fera.
Se falhou com o povo que lhe serviu de inspiração, Mulan trouxe um novo olhar para o estúdio. Mulan não quebra padrões apenas dentro de seu próprio universo, mas também fora dele. A animação colocou alguns temas em pauta em uma sociedade que ainda não buscava debatê-los. Trata-se de um longa da Disney, companhia que possui braços ao redor do mundo, atinge milhares de pessoas e é considerada relevante para a sociedade – principalmente para a ocidental – com uma mulher questionando sua posição na sociedade, vestindo-se de homem, lutando – literalmente e figuradamente – e homens vestindo-se de mulher (quem não lembra de Yao, Ling e Chien Po se vestindo de concubinas para distrair os guardas de Shan Yu enquanto Mulan procurava salvar o imperador?) em 1998.
Muitos anos antes de virar alvo de uma (ótima) campanha publicitária, Mulan já questionava o ”lutar/bater como uma garota”, assim como brincava com o ”vestir-se como menino” e ”vestir-se como menina”. Em um ambiente tão restrito e conservador, seus personagens acabam por transitar entre questões ainda pouco debatidas na época de maneira leve, levando o espectador a encarar com um olhar natural o que costuma ser estigmatizado e atacado.
Mulan empodera as garotas, mas não se restringe a elas. Por mais que o papel da mulher e a sua imagem sejam o centro, o longa traz também uma grande lição sobre ser e acreditar em você mesmo independente do que é apontado como certo ou como ”seu lugar” pela sociedade, além de ter coragem e se arriscar por algo em que se acredita. Não se trata de príncipes ou princesas, mas de pessoas comuns e a eterna busca do ser humano por si próprio.
*É fato que Mulan não é exatamente uma princesa – ela não nasceu na realeza e também não se casou com um príncipe – porém, é considerada pelo próprio estúdio como parte da franquia por se encaixar na ”mitologia das princesas”, logo, pode ser citada como tal.
**Originalmente, Valente foi uma obra produzida pela Pixar no período em que a mesma havia se desvencilhado da Disney, porém, ambas as empresas retomaram a parceria e Merida passou a figurar ao lado de Mulan, Bela, Pocahontas e tantas outras como “princesa Disney”.