Por Sttela Vasco
Uma das melhores sensações, para mim, é encontrar um filme muito bom puramente ao acaso. Você está lá, procurando por outra coisa que não tem nada a ver, e de repente esbarra com um que chama a sua atenção e se transforma em um achado mais do que precioso. Foi justamente isso que aconteceu comigo em relação ao belíssimo Não Sou Eu, Eu Juro!* (C’est pas moi, je le jure!), filme canadense de 2008 dirigido por Philippe Falardeau (A Boa Mentira), baseado no livro homônimo de Bruno Hébert e vencedor do Urso de Cristal no Festival de Berlim de 2009.
O filme, que foi gravado no Quebec, província no Canadá na qual a língua oficial é o francês – daí o fato de o longa ser neste idioma – narra a vida e os questionamentos de Léon Doré (Antoine L’Écuyer), um garoto de dez anos de idade que está enfrentando alguns problemas e utiliza sua imaginação como refúgio, e abraça diversos temas como depressão, rejeição, primeiro amor, abuso e violência de forma dosada e inteligente.
De princípio, acreditei que o longa seria um tanto “sessão da tarde’’, com um protagonista criança que cria aventuras para fugir da realidade. Confesso, fui precipitada em minha avaliação. Não Sou Eu engana por parecer ser um filme mais leve, mas é por pouco tempo. Logo em sua cena inicial nos deparamos com Léon questionando sobre a vida e se enforcando em uma árvore no quintal de sua casa – o que ele chama de “tentativa acidental de suicídio” – nesse momento já é possível ver que a história se trata de um menino complexo e muito consciente sobre o mundo ao seu redor.
Um mundo bastante maldoso, diga-se de passagem. A família de Léon tem problemas constantes com a vizinhança conservadora que a considera “anormal”, principalmente devido aos fatos de os pais do garoto brigarem constantemente. Tido como estranho e diferente, ele se sente isolado e incompreendido, utilizando a raiva como válvula de escape, punindo aqueles que o machucam. Logo temos cenas do menino invadindo a casa dos vizinhos e quebrando coisas, jogando ovos no telhado de uma vizinha ou roubando dinheiro.
Porém, muito mais do que uma forma de castigo para aqueles que criticam sua família, as “brincadeiras” de Léon são também uma forma de chamar a atenção de seus pais e desviar um pouco da tensão em sua casa. Em um momento, por exemplo, ao ver os dois brigando, o menino coloca fogo na cama do casal no intuito de encerrar a discussão. Muito além de um menino travesso, León é mais uma das milhares de pessoas que precisam aprender a lidar desde cedo com preconceitos e exclusões por não se encaixar no que é dito como certo ou normal. O grande porém é que ele não aceita esse tratamento tão bem. Não compreende e luta. Luta muito.
Tudo piora na vida de Léon quando sua mãe, Madeleine (Suzanne Clément), uma artista que se sente presa na própria casa e à rotina, decide deixar a família e se mudar para a Grécia na tentativa de começar uma nova vida. Isso destrói o garoto, que tinha na figura da mãe sua única amiga, e provoca conflitos ainda maiores entre ele e o pai. O filme ganha pontos por tentar não julgar Madeleine, mas sim mostrar como quem ficou para trás tenta se recuperar e seguir com a vida. Apesar da dor, León continua amando a mãe e esperando por sua volta. Essa espera, aliás, é a grande razão que ele encontra para permanecer vivo.
A tristeza de Léon e sua sensação crescente de não se encaixar e de alguma forma atrapalhar o caminho daqueles que o amam é transmitida aos poucos ao espectador e faz pensar se às vezes não deixamos de enxergar um pedido de ajuda óbvio, porém, silencioso e abandonamos alguém por resumir tudo a um mero “quer chamar atenção” ou “é rebeldia”. Léon, em suas atitudes aparentemente inexplicáveis, expressa sua dor. Porém, ela não é percebida da maneira certa.
Em meio a isso, ele descobre o amor e todas as suas alegrias e percalços em Léa (Catherine Faucher) , uma vizinha que, assim como ele, é rejeitada por ser considerada anormal. Ela vai, aos poucos, evoluindo na trama e se tornando uma das personagens principais. Uma das cenas mais importantes e emocionantes, inclusive, se dá graças a Léa. Ao invadir uma casa junto a León, a garota encontra um quarto cheio de bonecas Barbie – brinquedo que até então ela rejeitava ao dizer que é uma coisa de bebês – e começa a chorar compulsivamente e dizer que não sabe como brincar. É nesse momento que se percebe a fragilidade e também o abandono dela. Léa é uma criança que não sabe brincar, uma menina que teve seu direito à infância corrompido.
Abandonada pelo pai, a menina sofre agressões do tio e encontra no novo amigo uma fuga para os problemas. A forma como a amizade deles – e o sentimentos de Léon – é retratada com uma beleza melancólica faz tudo mexer ainda mais com o espectador, afinal, são duas crianças um pouco perdidas que acabam buscando refúgio entre si. Não Sou Eu, aliás, é um filme sobre relacionamentos, em sua maioria, complexos e confusos, mas bonitos a seu modo. O amor entre Léon e sua mãe, o modo como Jerome (Gabriel Maillé), irmão mais velho de Léon cuida dele mesmo sofrendo com suas atitudes, pai que tenta fazer o seu melhor, entre outros, são exemplos disso. E são também retratos bastantes reais da vida. Não há um personagem perfeito, assim como não há um vilão. Cada um tenta viver da maneira que acha melhor e, em meio a isso, acertar e ser feliz.
Apesar da tensão, o longa tem seus alívios cômicos – que são muito bons, diga-se de passagem – e consegue emocionar e envolver. Você fica na torcida para que esse menino consiga achar as respostas que procura e se sentir compreendido ou aceito, mas também se pega questionando a sua própria vida também. Vale destacar as ótimas atuações do elenco infantil e a naturalidade com que parecem encarar esses personagens tão difíceis. Entre todas as nuances de Léon, está alguma que fará com que você se sinta representado. Não Sou Eu, Eu Juro! é um filme para fazer pensar, mas também para fazer sentir. Qualquer um pode ser Léon e qualquer um já teve, tem ou terá um dia em que concordará totalmente com um dos pensamentos mais interessantes desse menino: “A vida não é feita pra mim, mas eu pareço ter sido feito pra vida.”
*É possível encontrar o filme também com o título Não Fui Eu, Eu Juro!