Por Rafael Ferreira
Não há cinéfilo que se preze que não se encante com o trabalho desenvolvido pelo estúdio Pixar. Desde sua estreia nas telonas em 1995 com Toy Story, o estúdio transformou o cinema, a partir de então, os filmes de animação passaram a ter um certo apelo aos pais que acompanhavam seus filhos no cinema. Up: Altas Aventuras, o décimo filme da Pixar, lançado em 2009, é um bom exemplo de filme que agrada tanto crianças quanto adultos, foi o segundo de animação a concorrer ao Oscar de melhor filme.
Up conta a história de Carl Fredricksen, um velho ranzinza que decide realizar um sonho de criança, e para concretizá-lo, amarra milhares de balões em sua casa e parte para a América do Sul. Para a surpresa do velho, havia alguém na sua varanda quando sua casa levantou voo, o garoto tagarela Russell. Enquanto tentam levar a casa de Carl à cachoeira, os dois encontram diversos obstáculos, como um pássaro raro, um cão falante, e um velho aventureiro perdido na sua obsessão.
Muitos se impressionam com a qualidade técnica de seus filmes, mas o que realmente importa são seus personagens, a história existe em função deles, e não o contrário, portanto, começaremos esta análise por este tema. AVISO: haverá SPOILERS, portanto, se você ainda não assistiu a este filme, faça-o antes de continuar a leitura deste texto. De preferência, assista com seu avô ou avó, para uma experiência única.
Up começou a ser desenvolvido a partir de um desenho que o diretor Pete Docter fez: um velhinho rabugento segurando vários balões com palavras alegres. O contraste nesta imagem chamou a atenção de Pete. “Quem é este senhor?” “Qual a sua experiência de vida?”. São questões que raramente passam pela nossa cabeça quando nos deparamos com uma pessoa de idade num parque, principalmente porque vivemos uma cultura dominada por jovens (e até mesmo adultos tentando ser jovens). Devemos lembrar que um dia estaremos em seu lugar e esta será nossa maior conquista.
Em vinte minutos de projeção, acompanhamos a trajetória de Carl Fredricksen da sua infância até os seus 78 anos de idade, são vinte minutos que nos mostram o quanto a vida passa rápido. Esta introdução é o coração do filme, ela carrega a essência da animação, a arte de contar uma história sem diálogos – uma coisa que o mestre Alfred Hitchcock nos ensinou: assistir um filme sem volume, se você compreender, é um bom sinal, caso contrário, o filme tem problemas, veja a seqüência do assassinato em O Homem Que Sabia De Mais (1956), por exemplo, são doze minutos sem diálogo –, se o público não se encantar pelo relacionamento deste casal, ele não se convencerá dos motivos que levam Carl a fazer o que faz.
O que o diretor quer é nos colocar no lugar de Carl e que nos importarmos com ele, pois sua vida é como a nossa, cheia de altos e baixos, enfrentando obstáculos, pode ser um pneu furado ou um telhado quebrado, situações que nos forçam a recorrer àquele dinheiro que estávamos juntando para uma ocasião especial, e como a maioria de nós que coloca nossos sonhos de lado para simplesmente sobrevivermos, são essas pequenas aventuras mundanas deste casal, refletidas nas nossas vidas que nos levam à identificação com Carl e Ellie. É interessante observar que é sempre Carl quem quebra o jarro de moedas, e isso traz um sentimento de culpa ao personagem, por ele sempre ter sido responsável por eles nunca terem ido ao paraíso das cachoeiras. Depois da derradeira tragédia em sua vida, ele se torna um cara reservado (sempre foi, quando criança mal falava), e isso é claramente percebido no design do personagem (crédito para o diretor de arte Ricky Nierva, creio que ele se inspirou no rosto de Walter Matthau ou Spencer Tracy), na animação, a silhueta do personagem e o staging são dois princípios fundamentais. O formato quadrado da sua cabeça nos diz que ele é um homem encaixotado na sua própria vida, tudo relacionado a Carl tem um formato quadrado, desde sua poltrona favorita, às molduras de suas fotografias.
Se a figura de Carl é inspirada num quadrado, a de Russell é inspirada numa sementinha ou num ovo, um ovo macio e fofo, condizendo com a função do personagem, pois um ovo precisa ser cuidado e protegido, senão ele se quebra. Todo mundo conhece uma criança parecida com Russell, aquele menino que quer ajudar em tudo, mas sempre acaba atrapalhando, sempre segue o manual, mas mesmo assim acaba dando algo errado. Ele é uma criança agitada, entusiasmada, mas há um momento no filme que percebemos que há uma ferida dentro dele. Sem falar abertamente (observe que Russell se sente desconfortável e nem sequer olha nos olhos de Carl quando toca no assunto, a propósito, uma excelente animação), o público e Carl percebe o que se passa na vida de Russell, a separação dos pais o entristece, neste momento vemos que o pai faz falta na vida de Russell, esta figura paterna ausente é substituída por Carl Fredricksen, que por sua vez está lidando com a perda da esposa. Carl acredita na promessa que fez para Ellie, como se ao levar a casa para a cachoeira pudesse trazê-la de volta, da mesma forma Russell acredita que conseguir o último distintivo trará seu pai de volta, e a família ficará completa novamente, e vale observar que o espaço para o distintivo de ajuda ao idoso fica no peito esquerdo de Russell, representando este vazio em seu coração que precisa ser preenchido. Ao final do filme, o “distintivo Ellie” (uma tampinha de garrafa), que antes representava a amizade entre Carl e Ellie, agora liga Carl e Russell, essa ligação entre esses dois personagens também é sugerida de outra forma bem sutil, observe que quando Carl é apresentado quando criança, ele usa a camisa por dentro dos shorts, com a gola direita por cima do colete, e a parte de baixo da camisa do lado esquerdo pra fora do short, da mesma forma, quando Russell é apresentado, a sua gola esquerda está por cima do lenço, e a parte de baixo da camisa do lado direito por fora do short, como se um personagem fosse complemento do outro.
Outro exemplo de personagem que quer reunir a família é Kevin, esta ave misteriosa que não voa. Em resposta à pergunta que todos fizemos, Kevin é um pássaro que não existe no mundo real. Ele representa algo diferente para cada personagem, Russell a ama porque “O escoteiro é amigo de todos, seja planta, peixe ou uma topeirinha”, além do mais, é totalmente condizente com o personagem que está lidando com a separação dos pais querer ajudar Kevin a se encontrar com a sua família. Para Carl, Kevin representa o amor que Ellie tinha por pássaros, então ele acredita que se estivesse viva, Ellie ajudaria Kevin; para Muntz, Kevin representa a sua obsessão, sua loucura, um sonho inalcançável, ele passou os últimos 52 anos na tentativa de capturá-la, ela seria seu ingresso para a fama, visto que sua carreira afundou justamente porque deram por falso os ossos que Muntz apresentou ao mundo. Em resumo, Kevin é o McGuffin do filme – como Alfred Hitchcock (última vez que o cito neste texto, prometo) explica, “é inconseqüente, ainda que seja de grande interesse para o protagonista de um filme (ou antagonista). É um objeto ou dispositivo que conduz o enredo, geralmente no começo de uma história, mas que pode ser facilmente esquecido após atingir o objetivo.”
Pessoalmente, acho que Muntz ficaria mais rico se patenteasse a coleira que traduz os pensamentos dos cães. Todos esses anos recluso, sua única companhia (fora aqueles que apareceram em seu caminho, mas foram eliminados) foram seus cães, estes executam todo tipo de tarefa, desde piloto a chef de cozinha. Eles recebem nomes como Alfa, Beta, Gama, Delta, Épsilon, e assim subseqüentemente, mostrando que existe uma hierarquia entre eles, um sistema de castas, onde o Dobermann Alfa é o líder da matilha e o Rottweiler Beta é o seu braço direito, mas Dug não é uma letra grega, ele está abaixo desta hierarquia.
Dug é um cão Labrador, ele age como um cachorro de verdade, uma característica desta raça é que ele tem uma memória curta (tipo a Dory do Procurando Nemo), por isso é difícil treiná-lo a não fazer as necessidades no lugar errado, esse lapso de memória faz com que o cão fique mega entusiasmado toda vez que faz uma atividade, pode ser passear de carro, ir ao quintal, ou brincar de bola, mesmo que já tenha feito isso centenas de vezes, ele sempre irá achar que é a primeira vez. O grande mérito para os cães no filme serem tão parecidos com os cães no mundo real, é que a produção contou com um especialista em comportamento canino, Ian Dunbar, ele quem deu as dicas aos animadores sobre como os cães se comportam diante de outro para mostrar que não é uma ameaça, ele quem esclareceu as linguagens corporais, desde o abanar de rabo à posição da orelha.
Muitos dos meus amigos não sabem, mas estou na metade do caminho para me formar em Arquitetura e Urbanismo, assim como muitos de meus colegas de faculdade não sabem que trabalho com desenhos animados, portanto, isso me dá propriedade para falar dos dois assuntos. Posso dizer que a escolha de um material leve, madeira, nos faz acreditar que a mesma poderia, sim, ser levantada do chão. A presença de varanda, bay window, as cores vibrantes, principalmente depois que Carl e Ellie a reformaram, o telhado com uma inclinação de mais de 45% e telhas ardósia arredondada, detalhes talhados na caixa da janela, são características do estilo vitoriano, que fazem referência à infância de Walt Disney na cidade de Marceline, Missouri, descrita no primeiro capítulo da biografia escrita por Neal Gabler.
Analisando o entorno, é um bairro antigo, esta humilde residência resistiu aos cinqüenta anos de crescimento, enquanto as casas ao redor deram espaço a outros tipos de loteamento, tornando a casa de Carl uma “casa prego”, uma situação que me faz lembrar outro curta da Disney, The Little House (1952). Em 2006 (Up começou a ser produzido em 2004) um caso semelhante aconteceu em Seattle, Washington, uma senhora de 84 anos de idade, Edith Macefield, recusou uma proposta de um milhão de dólares pelo seu terreno e sua casa de 108 anos, para a construção de um shopping, o projeto teve de ser mudado para contornar a casa dela. Dois anos depois ela veio a falecer de câncer no pâncreas.
No interior da casa de Carl vemos como é cheia de lembranças, ele e sua esposa gostam de colecionar recordações. Quanto à iluminação, a janela bay window oferece ótima iluminação natural, nota-se que enquanto Ellie é viva a sala de estar é sempre bem iluminada, mas após sua partida, Carl se enclausura num ambiente escuro. Em vários filmes, a casa é apenas um componente do cenário, neste caso não. Literalmente e figurativamente, Carl está preso à casa porque ela representa Ellie e toda a vida que tiveram juntos, mesmo depois que a personagem parte, sua presença é sentida durante o filme, é uma experiência catártica para Carl quando ele finalmente chega ao paraíso das cachoeiras e se dá conta de que Ellie não é a casa e nem os móveis, ela está em seu coração (meio piegas, mas verdadeiro), assim que ele se dá conta disso, ele começa a se desprender do passado para poder seguir em frente. Podemos refletir sobre este momento da seguinte forma: vista de longe, a cachoeira realmente parece ser o paraíso, mas quando Carl finalmente a alcança, ele vê que não era bem o que ele imaginava, o solo é rochoso, sem vida, chato, como se aquilo fosse um sonho vazio, por isso que, mesmo que Carl tenha chegado ao seu destino, não está feliz, pois ele ainda não está completo.
Em contraste com a humilde casa voadora de Carl, há a luxuosa casa/dirigível/museu de Charles Muntz (esse nome não me é estranho, já ouvi antes), um símbolo da glória da era das naves mais leves que o ar nos anos 30, e claro não podemos deixar de lembrar da tragédia do dirigível Hindenburg em 6 de maio de 1937. Este tipo de aeronave usava gás hidrogênio para flutuar, pois é mais leve que o oxigênio, porém, é extremamente inflamável, perigoso e imprevisível, uma bomba que pode explodir com facilidade, assim como o próprio Charles Muntz. O Espírito de Aventura pode ser visto também como o interior da mente de Muntz, quanto mais fundo você entra, mais sombrio fica, é preenchida por objetos que mostram o seu poder, sua imensa ambição e obsessão por encontrar Kevin, ele me lembra um Howard Hughes, e não é por acaso, pois o aviador foi uma das inspirações para o design do personagem, assim como os atores Errol Flynn, Clark Gable, e Walt Disney…Ah, me lembrei por que o nome Charles Muntz me pareceu familiar, é uma referência a Charles Mintz, o executivo do Estúdio Universal que em 1928 afanou os direitos do personagem Oswald, criado por Walt Disney, o que o levou a criar o Mickey Mouse. Para mais detalhes, leia o capítulo 3 da biografia do Walt Disney.
Por falar em “obsessão por encontrar”, filmes da Pixar são famosos pelos seus easter eggs. Se você não está familiarizado com o termo, são pequenos segredos escondidos pelo filme, que fazem referência direta a outras obras do mesmo estúdio ou do mesmo diretor – tenho uma teoria de que esta prática começou com Hitchcock, e depois o Kubrick adotou, em seguida a Disney – não são importantes para a história, mas é divertido descobri-los, pois mostra que você está atento aos detalhes. Particularmente no caso deste estúdio, os easter eggs surgiram como uma reciclagem de objetos virtuais, na necessidade de uma bola para o quarto de Andy em Toy Story, para poupar tempo e não precisar criar outra, “vamos utilizar a mesma do curta Luxo Jr. (1986)”; precisando de um carro velho para compor um cenário em Vida de Inseto (1998), “vamos usar aquele carro do Pizza Planet que criamos para Toy Story”, precisamos de um personagem para ser o restaurador de brinquedos em Toy Story 2 (1999), “vamos usar este velhinho do curta Geri’s Game (1997), sempre achei que ele tinha cara de restaurador de brinquedos”, e o resto é história. Como mais de um projeto é desenvolvido ao mesmo tempo, o estúdio começou a plantar pistas sobre seu filme seguinte, mas é claro que não devemos saber disso de antemão, somente numa revisão anos depois é que percebemos esta brincadeirinha dos realizadores, às vezes o projeto é abortado, mas a referência permanece. Para os cinéfilos mais ávidos, além dos easter eggs dos filmes da Pixar, a diversão é encontrar as referências a outros filmes que inspiraram os realizadores.
Agora que já conhecemos mais sobre este filme, que tal encontrar outro significado para ele? Existem inúmeras teorias criadas por fãs da Pixar circulando na Internet, algumas delas absurdas, outras precisam de muito esforço para fazer sentido, outras são completamente falsas, mas uma delas me chamou a atenção, pois como obra de arte, um filme está aberto a interpretações, sejam intencionais ou não pelo autor, uma falácia intencional (termo literário que diz que o significado apresentado pelo autor não é o único e nem o mais importante da obra) se preferir.
Disney e Pixar produzem filmes voltados para o público infantil, mas desde a época da renascença do estúdio suas produções têm conquistado cada vez mais o público adulto, isso porque seus filmes passaram a lhes oferecer algo, significados que crianças ainda não adquiriram maturidade suficiente para refletir. Assim, Up pode oferecer “altas aventuras” – me desculpem pelo trocadilho – para os pequenos, mas um adulto poderá encontrar um significado mais profundo, como muitos fãs que acreditam que a partir do segundo ato seja a jornada de Carl no pós-vida. Durante todo o primeiro ato do filme, não há nenhum elemento fantástico na vida de Carl, exceto pela sua mente fértil quando criança, tudo parece normal e condizente com a realidade, não há cães falantes, casas flutuantes, ou aventuras, estes elementos só surgem depois que Carl volta do tribunal emocionalmente abalado, pois está prestes a ser levado para o asilo, para um estilo de vida que ele sempre rejeitou. Quando ou como ele morreu? Bem, podemos interpretar a cena da casa se desprendendo do solo como sendo uma representação da alma de Carl se desprendendo do seu corpo, com destino ao Paraíso das Cachoeiras (um nome sugestivo, não acham?), um lugar utópico. Durante o voo, ele encontra Russell em sua varanda, mas o garoto não estava lá quando a casa se desprendeu, como se ele tivesse aparecido magicamente lá. No mundo real, Russell é um escoteiro que precisa ajudar um idoso para ganhar o último distintivo e ser promovido a grande explorador, ele insiste: “Eu posso ajudá-lo a atravessar a rua. Eu posso ajudá-lo a atravessar o seu jardim. Eu posso ajudá-lo a atravessar sua varanda. […] Bem, eu preciso ajudá-lo a atravessar alguma coisa.” Russell poderia ajudá-lo a atravessar o pós-vida. Se voltarmos alguns parágrafos, veremos que Up teve inspiração em A Felicidade Não Se Compra (1946), que conta a história de George Bailey, que após uma tentativa de suicídio, passa a ser assistido por Clarence, um anjo que poderá ganhar suas asas se ajudá-lo a perceber o valor da vida que tivera. Russell é este anjo da guarda, que assume a forma de criança para cumprir a carência de Carl de ter um filho, mas nunca pôde devido à infertilidade de Ellie, e o distintivo que ele almeja representa o merecimento das asas, como se esta fosse a sua provação final. O segundo ponto de virada, quando Carl finalmente chega com sua casa à cachoeira e tem aquele momento com o livro de aventuras, ele se dá conta de que precisa seguir em frente, ter uma nova aventura rumo ao desconhecido, assim como George Bailey, Carl se dera conta do valor que sua vida tivera, e esvazia sua casa de todos os objetos e mobílias, ele está literalmente se esvaziando suas memórias terrenas. Quando ele abandona sua casa, que por sua vez é a ligação entre Carl e o mundo dos vivos, esta desaparece entre as nuvens, isso mostra a aceitação da própria morte. O próprio título do filme sugere para onde Carl está indo, Up (para cima), num determinado momento, quando Carl, Russell, e Kevin estão fugindo da matilha de cães por uma caverna, Dug grita “vá em direção à luz, Mestre!”, sugerindo a morte de Carl. O cachorro parece ver a morte como algo banal quando conta uma piadinha sobre um esquilo que se esqueceu de guardar avelã para o inverno e agora está morto. Até agora não respondi quando ou como Carl morrera. Talvez ele também tenha se esquecido de guardar avelãs para o inverno, mas é mais aceitável que tenha sido depois que voltara do tribunal, ou quando se despede da casa quando os dois enfermeiros do asilo chegam para buscá-lo.
No caso de Up, pode ser que não seja a intenção de Pete Docter que o filme fosse compreendido dessa forma, talvez esteja viajando na maionese, seja como for, não quer dizer que não possamos refletir sobre.