Desde quando a gente ainda planejava começar a Trilhando, lá no inicinho de tudo, a existência de Ennio Morricone nos movia e era a inspiração fundamental para que pensássemos em trazer para o Cinemascope uma coluna dedicada ao som no cinema. Morricone mudou minha vivência com o cinema e a música desde que vi pela primeira vez Os Intocáveis (1987). Eu era bem jovem na época e nem me dava conta de todo o trabalho de trilha sonora que havia por trás do filme de Brian de Palma. É como se fosse um filme dentro do filme. Eu que sou fissurado em música, naquela época já tive o primeiro contato com algo que mais tarde influenciaria totalmente meu apreço por filmes com um trabalho tão primoroso dedicado a trilha sonora. Assistindo Os Intocáveis eu senti pela primeira vez a complexidade envolvida em uma obra com uma trilha toda pensada e calculada detalhe por detalhe. E talvez até na elaboração de cada detalhe fosse difícil prever o que ia sair dali: uma obra tão completa onde você vive sensações de estar assistindo um western, um drama, um suspense, um thriller psicológico – tudo dentro da mesma criação.
É até difícil dizer que Morricone nos deixou, quando na verdade ele está mais aqui que muitos de nós. Sua memória é algo praticamente impossível de se apagar. É até estranho pensar isso nos dias de hoje em que trabalhamos cada vez menos com memórias humanas e mais com arquivos digitais frios, cada vez mais numerosos e sempre prontos para serem acessados, se um dia nos lembrarmos de fazer isso. O que me faz dizer que Morricone está aqui é que posso sentir suas melodias em vários momentos e em vários lugares. Talvez eu tenha descoberto primeiro músicas que foram feitas pela influência do mestre antes mesmo de ter contato com sua obra original. Isso acontece muito quando se trata de figuras gigantescas. Lembro lá da minha infância aquele disco Moendo Café girando na vitrola do meu pai e esse som que só depois de muitos anos pude notar alguma similaridade:
E na minha vida a trajetória de Morricone teve um caminho quase inverso mesmo. Eu cheguei até Os Intocáveis talvez por na época ser um filme mais popular – em comparação com os outros filmes que contaram com o seu trabalho na trilha sonora – e o primeiro que tive contato naquele tempo. Quando me dei conta, já depois de muitos anos, com mais maturidade, de que existe um rico arsenal de Morricone em parceria com Sergio Leone – como Três Homens em Conflito, por exemplo – é que eu pude perceber que sua obra é quase um poço sem fundo e que essa influência que eu vejo se repetir no cinema e na cultura pop ainda vai fazer várias voltas e talvez eu jamais vá me afastar de sua música.
Fui impactado mais uma vez pelo som de Morricone quando o trecho “aaaa” de Fuga a Cavallo – tantas vezes replicado na cultura pop – foi parar na introdução de Clint Eastwood, hit que impulsionou o primeiro disco do Gorillaz e que leva o nome do ator que estrelou filmes com trilhas icônicas do maestro. O que me fez lembrar de outro momento da minha vida, lá na infância quando a introdução dessa música estampava a abertura do programa policial Itatiaia Patrulha, da Rádio Itatiaia, de Belo Horizonte, com a Gloria Lopes. Na minha casa sempre passávamos o dia inteiro com o rádio ligado e minha mãe ouvia esse programa todos os dias, o que fez com que eu conhecesse esse trecho da trilha de Três Homens em Conflito bem antes de saber o que era cinema.
Além de influenciar a geração de Damon Albarn, uma das grandes mentes criativas da música nos últimos 20 anos, Morricone continua ressoando na mente e no som de gente que veio um pouco depois, como os britânicos do Muse. Eles usam com frequência a The Man With The Harmonica, na introdução de Knights of Cydonia em seus shows, principalmente na grande apresentação que a banda fez no Rome Olympic Stadium, em 2013.
Tenho essa percepção ou sensação que estou ouvindo a música de Ennio Morricone por onde quer que eu vá. Até mesmo há alguns anos quando eu voltei a jogar Zelda The Ocarina of Time, um dos jogos que mais gosto, fiquei com a impressão – mesmo sendo só impressão mesmo – que as trilhas de Koji Kondo feitas para o game também bebiam na fonte de sons como Infanzia e Maturità e Mistico Ma non Tropo. Só eu que tenho essa sensação?
As semelhanças entre as melodias que vou percebendo no meu dia a dia e que vão se repetindo como num ciclo infinito só me fazem lembrar do quanto sou sortudo por poder ter vivido numa época em que Ennio Morricone estava entre nós e produzindo, compondo, sempre com o mesmo rigor e maestria. É impossível eu me esquecer de tudo que vivi nesse período e de como esses sons me influenciaram e continuam me influenciando. E com certeza serão sons que farão parte da vida de outras pessoas que virão. Meus sobrinhos, meus filhos, meus netos.
E nem é preciso ser um apaixonado por cinema pra gostar da música de Morricone. Suas composições embalaram cenas e mais cenas de filmes que após vistos, não há mais como desver. E talvez pra quem assista a essas cenas fica difícil não associar as músicas a esses momentos, mesmo ouvindo as melodias isoladas. Ainda assim, tocar um disco de Morricone pode te levar a outros lugares e despertar outras sensações, além da referência direta aos filmes que conhecemos, muitos deles exatamente por causa de sua música. Seu repertório existe por si só. Fazer o exercício de ouvir seus discos é uma experiência tão agradável quanto ir em busca desses filmes.
Essa playlist é uma amostra da música de Ennio Morricone. Músicas que podem fazer você de se lembrar de Cinema Paradiso, de Bastardos Inglórios ou de Os Oito Odiados, de Era Uma Vez no Oeste ou de Por Um Punhado de Dólares. Ou então esses sons podem apenas fazer você ir atrás de um pouco mais de Morricone. Qualquer caminho é válido nesse caso. O que eu desejo é que, assim como acontece comigo, que essa música esteja sempre com você.
Até a próxima!
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