Por Luciana Ramos
“Eu matei por dinheiro e por uma mulher. Eu não consegui nem o dinheiro nem a mulher”. Walter Neff , em sua confissão, traduz o sentimento do que é um filme noir. É uma história de amor e perdição. O homem que fica cego de desejo e é transformado em brinquedo nas mãos de uma mulher ambígua e muitas vezes calculista que, invariavelmente, o leva a ruína.
Walter Neff (Fred MacMurray) conhece Phyllis Dietrichson (Barbara Stanwyck) quando ele visita a sua casa a procura do seu marido para tratar de um seguro de carro. Walter fica encantado com a presença marcante dela (e de sua tornozeleira) e logo os dois já estão falando em adultério e a possibilidade de fazer um seguro de vida para o marido sem que ele o saiba para então matá-lo. Os dois amantes desejam receber a dupla indenização (que dá nome ao filme em inglês, Double Indemnity), somente liberada em casos extremos como o escolhido por eles, morte por acidente de trem. O reembolso, de 100 mil dólares, seria liberado pela empresa em que Walter trabalha depois de ser descartada a hipótese de assassinato. Alguns obstáculos, como a certeza da premeditação do crime pelo chefe de Walter, Keyes (Edward G. Robinson, em excelente atuação), torna impossível para eles ficarem juntos. Desconfiança e traição terminam de selar tragicamente o destino dos dois.
Parecia impossível que uma história sobre adultério e assassinato com um alto teor sexual fosse autorizado pelo Código Hays, censura das obras cinematográficas vigente na época. No entanto, o empecilho acabou virando o grande trunfo do filme. De maneira inteligente, Wilder conseguiu abordar tudo o que queria através da sugestão das ações em diálogos bem construídos e truques de cena. Multas de transito, por exemplo, viram analogia para adultério. A expressão de satisfação contida no rosto de Stanwyck (em momento de pura vilania) é a única indicação de que seu plano deu certo e seu marido está morto. Wilder entendeu, assim como Hitchcock, que fazer o espectador construir a cena na sua mente às vezes tem mais força do que mostrar de fato o que ocorreu.
Como em outros noir, a narração em off é extremamente importante para o entendimento da trama. Aqui, Neff vai ao seu escritório onde, claramente ferido, pega um vitafone e então confessa o crime que cometeu com sua amante. A revelação transforma o público em aliado e, ao mesmo tempo que destrói a expectativa do final, gera curiosidade. Muito da eficiência desse artifício deve-se a parceria de Billy Wilder com o famoso escritor de romances noir, Raymond Chandler, que co-escreveu o roteiro. Vê-se muito da sua escrita sofisticada na confissão de Walter. Quando ele diz que não podia sentir seus pés e que isso representava a caminhada de um homem morto, é Chandler que estamos ouvindo.
Além da narração, o uso de flashback e o alongamento da cena para sustentar a tensão são truques narrativos usados pioneiramente em “Pacto de Sangue” que viraram clichês pela quantidade com que são explorados nos filmes Hollywoodianos desde então. Hoje em dia, é esperado e um pouco exaustivo saber que algo atrapalhará momentaneamente o bandido, colocando-o em perigo de ser descoberto. No entanto, quando Phyllis e Walter estão sentados no carro logo após a morte do marido e não conseguem fazer o carro pegar, o suspense toma a tela e nos pegamos torcendo para o casal.
O visual do filme é altamente estilizado. A fotografia é sombria e marcante. A ideia é que a escuridão da tela reflita o estado interior dos personagens. Em uma das visitas de Walter aos Dietrichson, a única luz do ambiente vem das persianas das janelas, iluminando o seu corpo de forma atravessada, parecendo grades. O filme é coberto de simbolismos. Em entrevista posterior, Wilder chegou a justificar a escolha de uma peruca extremamente artificial para Barbara Stanwyck dizendo que o visual de Phyllis deveria ser tão falso quanto o seu caráter.
Do ponto de vista cenográfico, Wilder queria que a residência de Phyllis parecesse suja e desgastada, uma justificativa para a sua cobiça. Para obter tal visual, mandou pintar a casa escolhida como locação de amarelo e soltou pó de alumínio no set para compor “partículas de poeira” visíveis no preto e branco.
Pacto de Sangue é um grande filme sobre pessoas comuns que são levadas por motivações vis a cometerem crimes. A tornozeleira, a peruca loira, os óculos escuros dentro de um supermercado, a intimidade de Walter Neff com seu chefe Keyes mostrada pelo simples acender de um cigarro. São estes detalhes, somados ao primor narrativo e técnico, que concedem grandeza ao filme e o transformam em um dos melhores clássicos do cinema. Mais que isso, é o melhor filme noir já feito. De fato, caso pondere sobre “O que é um filme noir?”, não deve deixar de assisti-lo.
VOCÊ NÃO SABIA QUE…
– O filme é uma adaptação literária do romance policial escrito por James M. Cain e primeiramente publicado em oito partes na revista “Liberty”. Além de Pacto de Sangue, outros três livros do autor foram parar na telona: Almas em Suplício (1945), O destino bate a sua porta (1946) e Serenata (1956).
– James M. Cain tirou a ideia do seu romance de um caso verídico, ocorrido no Queens, Nova York. Em 1927, Albert Snyder foi morto por sua mulher Ruth e o namorado dela, Judd Wey. Eles queriam embolsar o dinheiro do seguro de vida do marido.
– Billy Wilder chegou a rodar outro final. Nele, Walter Neff está na câmara de gás pronto para morrer, sob o olhar desolado do seu amigo Keyes. Este foi abandonado após as exibições prévias feitas para um público seleto que se espantou com o que viu. Posteriormente, Wilder assumiu que esta cena seria um anticlímax à anterior, que acabou sendo a final, onde Neff está morrendo e Keyes acende o seu cigarro.
– Em 1945, Pacto de Sangue recebeu sete indicações ao Oscar. Porém, o filme O Bom Pastor (Going My Way) começou a levar todos os prêmios. Quando o diretor Leo McCarey ganhou, Wilder não resistiu e pôs o pé para ele tropeçar.
– Diz a lenda que, ao ver Barbara Stanwyck de peruca, um executivo da Paramount teria dito: “Nós contratamos Barbara Stanwyck e recebemos George Washington”.
– A princípio, a produção não conseguia convencer nenhum ator para trabalhar neste filme. Eles tinham medo do conteúdo subversivo para a época. Alguns dos que recusaram o papel foram Spencer Tracy, Jimmy Cagney e Gregory Peck.
– Raymond Chandler e Billy Wilder odiavam-se. Segundo o diretor, foi “ódio à primeira vista”. A situação chegou ao ponto de Chandler pedir demissão no escritório da Paramount, entregando uma lista de reclamações acerca do comportamento do diretor. Uma delas dizia que ele não concordava em Wilder usar chapéus dentro do escritório, pois isso implicava que ele podia sair andando a qualquer momento. O escritor acabou permanecendo no projeto e vê-se muito da sua influência no roteiro.
– Em 1944, Barbara Stanwyck não era só a atriz mais bem paga de Hollywood como também a mulher mais bem paga dos EUA.
Veja o trailer: