O termo “cinematográfico” geralmente é usado para descrever as obras do cineasta Akira Kurosawa e o mangaká Osamu Tezuka, devido ao estilo dinâmico e envolvente dos autores. Nos quadrinhos, o Tezuka maduro utilizou uma quadrinização fora padrão, para a sua ṕoeca, frequentemente apresentando requadros em variados formatos, e não somente no formato quadrado; esse elemento se tornou, posteriormente, uma característica básica nos mangás. Já Kurosawa apresenta uma mise-en-scène sofisticada, que é característica de mestres do cinema japonês clássico, como Ozu e Mizoguchi, mas com um ritmo muito próprio, que é alcançado por uma montagem igualmente eficiente, se distanciado dos longos planos de Mizoguchi ou dos tempos mortos de Ozu. Como lembra Paulo Emílio Sales Gomes, no texto Três mestres japoneses: “Para resumir numa simplificação didática os seus estilos, basta indicar a iniciação artística de cada um: pictórica para Mizoguchi, teatral para Kinugasa, cinematográfica para Kurosawa”.

Ainda que essas descrições realmente sejam consistentes para caracterizar as obras dos dois autores, acredito que é problemático levá-las ao pé da letra. Ser cinematográfico não significa, necessariamente, apostar em um ritmo mais pulsante. No entanto, talvez movido pela força da contradição, resolvi unir os dois autores nesta coluna do “Requadro Cinematográfico”, analisando a maneira como eles retratam um período histórico bem complexo: o Japão pós Segunda Guerra Mundial, quando, derrotado, o país foi ocupado por forças norte americanas.

Escolhi as obras “Ayako” (1972), de Osamu Tezuka, e “Anjo embriagado” (1948), de Kurosawa. O cineasta ainda estava vivendo as contradições do Japão, de modo que o seu retrato é mais sutil e com poucas informações históricas, provavelmente devido às próprias censuras do período da ocupação. Já o mangaká apresenta um distanciamento maior, buscando uma reconstrução histórica daquela eṕoca até os anos 1970, sendo bem mais explícito sobre os efeitos sociais da Segunda Guerra. Ainda assim, as duas obras carregam um simbolismo (mais alegórico em Kurosawa e mais histórico em Tezuka) que prolonga a importância cultural de ambos os trabalhos. Mas isto não significa que elas não tenham problemas. Vamos abordar essas potencialidade e limitações agora.

O QUADRINHO: AYAKO, DE OSAMU TEZUKA

Distanciando por décadas da Segunda Guerra Mundial, Osamu Tezuka, em 1972, não tinha as restrições políticas provavelmente sofridas pelo Kurosawa de 1948, já que, no período da ocupação americana, era proibido comentar as barbáries da guerra. Assim, em Ayako, Tezuka utiliza a trajetória de uma família da elite camponesa desde os anos 1940 até os anos 1970 para demonstrar as contradições desse período histórico. O aspecto corrupto, tanto político quanto moral, é escancarado em páginas que facilmente causam aversão no leitor. O objetivo é demonstrar a perversão da elite social e política que se solidificou no Japão do pós-guerra.

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No entanto, Ayako nos oferece uma interessante problematização. A personagem título é o centro das atenções de muitos personagens, mas ela não apresenta nenhuma autonomia, nem sobre o seu próprio sofrimento. Enclausurada em um porão por anos, quando temos acesso à subjetividade da personagem, é sempre a partir da subjetividade do desejo masculino.

Se Kurosawa torna belo as angústias trágicas e abstratas de seu doutor e paciente, Tezuka estiliza uma bem realidade concreta: a exploração sexual de uma jovem. Antes de continuar nessa problematização, uma apresentação do enredo.

A linha temporal de Ayako começa em 1949 e vai até 1973. Durante esse tempo, acompanhamos o deterioramento do poder dos Tenge, uma família importante do interior do Japão e que existe há 300 anos. A obra começa com o retorno de Jiro Tenge, após a guerra, para a sua família. No reencontro, ele conhece Ayako ainda criança e rapidamente descobre que ela é filha de seu pai e de sua sogra, Sue. O seu irmão, Ichiro, não questionou esta relação devido a promessa de que ele seria o patriarca da família com a morte do pai.

Enquanto descobrimos esses fatos mórbidos, também seguimos os passos misteriosos de Jiro, que se tornou um espião japonês para se salvar durante a guerra. Após participar de um assassinato, investigadores policiais conseguem chegar na região onde mora sua família. Ameaçando contar os segredos em volta de Ayako, Jiro consegue fugir, enquanto o seu irmão Ichiro decide trancar a sua “irmã” em um porão, onde ela reside por vários anos. Assim, ao longo de 700 páginas os acontecimentos históricos do Japão do pós guerra são entrelaçados à vida corrupta de Jiro e ao esforço de sua família em esconder Ayako.

A preocupação histórica de Tezuka é enorme. A todo momento acontecimentos individuais são contrabalanceados com acontecimentos históricos que afeta, em maior ou menor grau, a família Tenge. A desapropriação de terras iniciada pela reforma agrária da ocupação americana, por exemplo, não é somente um fato histórico, mas um elemento que retira mais ainda o poder da família Tenge, em um duplo movimento narrativo, no qual a revelação da perversão sexual é acentuada enquanto o poder da família centenária é amenizado.

O retrato sem censura das hipocrisias em volta de uma família poderosa é realizado com esmero por Tezuka, já que é difícil não sentimos aversão pelos homens Tenge. Mas ao criticar uma estrutura de poder patriarcal, é necessário dar autonomia às mulheres que são oprimidas em tal estrutura: isso não acontece em Ayako. Nós lemos homens podres caminhando pela história, com h maiusculo ou minusculo, mas homens sobretudo.

Se as mulheres são diminuídas pelos homens Tenge, Tezuka não dá muita visibilidade, interna ou externa, a elas, pelo menos não da maneira como faz com os homens. Devido a essa opção, Ayako apresenta vários paradoxos, principalmente em relação às supostas boas ações de alguns personagens. Acompanhamos, por exemplo, o avô que faz de tudo para ajudar a filha proveniente da chantagem sexual que pratica com a sua nora. Há também o homem (Jiro) que durante anos manda dinheiro para a irmã mais nova após ter tentado assassiná-la (e este mesmo homem é quem faz sexo com uma espiã como tática de manipulação. Há também o irmão que salva a irmã de um desabamento, sendo que ele praticava sexo com ela enquanto ela estava no porão.

A mulher dos paradoxos listados é Ayako. Mas ainda que ela seja o centro da atenção de muitos personagens, Tezuka não consegue transmitir de forma plena outras camadas da individualidade da personagem (diferente do que ele faz na construção dos personagens masculinos, cuja devassidão é abordada intensamente). Apesar de personagem título, ela fala pouca ou quase quase nada. Até as suas dores são explicadas pelos homens.

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As suas descobertas mais significativas são referentes ao sexo praticados com os homens em sua volta. O amadurecimento do seu corpo é sempre demonstrado com conotações erotizadas e voyeurísticas. Tezuka, um homem que nasceu 1928, naturalmente constrói uma narrativa que é baseada em estruturas masculinizantes. Um comentário de Laura Mulvey sobre um clássico de Hitchcock nos auxilia nesse argumento:

“Longe de ser apenas um adendo sobre a perversão da polícia, Um corpo que cai concentra-se nas implicações da divisão que há entre o ativo/aquele que olha e o passivo/aquele que é olhado, em termos de diferenciação sexual e do poder simbólico inscrito no herói”

Ayako não é somente sobre a perversão de uma família de elite japonesa, mas também apresenta essa divisão, com conotações sexuais, entre quem olha e é olhado. A questão se torna problemática no quadrinho pois o poder simbólico dos homens não está concentrado em um homem, mas em vários, e, entre eles, no próprio narrador, que apresenta Ayako de forma erótica. É claro que em seu enclausuramento Ayako não existe somente de forma erótica. No entanto, Tezuka só deixa o leitor ter contato com esse aspecto.

O traço de Tezuka também apresenta alguns paradoxos. Os personagens são desenhados com maior ou menor esmero, de forma padrão. Os espaços onde vivem os personagens é que ganham destaque, tanto no desenho de ambientes interiores quanto da natureza, mostrando como essa natureza milenar tão bela, e que ainda é preservada, é povoada pelos seres mais torpes. Até quando algumas páginas contém acontecimentos vagos, o traço solto ainda é potente, como na página abaixo que demonstra uma chuva.

Nos momentos eróticos também há um cuidado estilístico maior; eles chegam a ser desenhados com uma estilização pictórica que não se importa mais com o realismo da narrativa e entra em uma espécie abstração erótica escancarada. Tal representação é, como já dito, uma escolha.

Nos tempos de hoje, a relação com determinadas obras do passado deve passar por essas problematizações. Isso não significa que é preciso excluir determinados autores ou amenizar as qualidades potentes de suas obras. Mas ler, comentar e/ou analisar uma obra sem determinadas problematizações me parece uma leitura limitadora. Ayako de Tezuka é potente ao lançar um olhar incisivo sobre as elites japonesas que se fortaleceram ou que entraram em declínio no Japão do Pós Guerra.

A polidez narrativa da obra é impressionante. Tezuka quase nunca cai em exageros discursivos e apresenta uma quadrinização frenética com os mais variados requadros. O autor experimenta até o tradicional, em uma sequência de páginas em que é usado como requadro somente um retângulo lateral, com uma câmera fixa por sete páginas. Os personagens entram e saem do quadro como se estivessem em um palco teatral; fascinante.

A obra consegue ser lida facilmente nos dias de hoje, o que não é algo fácil considerando os temas difíceis, histórica e moralmente, tratados pela obra. Tal facilidade não ocorre, por exemplo, com alguns clássicos dos comics americano dos anos 1970. Em termos narrativos, não é preciso uma espécie de distanciamento para apreciar a leitura.

No entanto, a preocupação histórica e narrativa não se repetiu com a representação das personagens femininas, cujas construções foram situadas pelas relações que elas tinham com os homens. Mesmo presa, Ayako poderia ter um mundo de reflexões próprias que demonstrassem as suas angústias, fantasias e dificuldades comunicacionais. Guardada as devidas proporções, o último e mais impactante episódio da série Olhos que condenam, de Ava DuVernay, apresenta de forma bem mais potente o enclausuramento de um ser humano, quando é demonstrado os anos de prisão do personagem Korey, adolescente negro preso injustamente nos anos 1990. A sua subjetividade é representada de maneira ampla e poética, não sendo limitada pelos opressores que os colocaram naquele lugar. Faltou esse tipo de construção na Ayako de Tezuka.

O FILME: O ANJO EMBRIAGADO, DE AKIRA KUROSAWA

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No livro “The Material Ghost: Films and their Medium”, Gilberto Perez argumenta que os românticos emolduraram uma concepção de liberdade que não foi questionada nem pelos impressionistas: “a liberdade como uma natureza recuperada”. Não quero “aplicar” essa reflexão a proposta de uma obra oriental, cujo contexto cultural é bem diferente dos românticos e impressionistas. No entanto, ela serve como um ponto de partida, já que acredito que as obras aqui comentadas quebram as expectativas sobre os significados da natureza.

Em O anjo embriagado, de Akira Kurosawa, é recorrente o enquadramento de uma água lamacenta: é o pequeno mangue localizado em frente à casa do doutor do protagonista. Essa água marca ora o início ora o fim de uma cena, dando o tom da vida do personagens. Não é a água cristalina que habita suas vidas, mas uma água contaminada e espessa.

O Japão do pós guerra retratado por Kurosawa no filme é permeado por esses símbolos que, de diferentes maneiras, demonstram o vazio dos personagens construídos, um vazio que não pode ser preenchido por nada, nem mesmo por códigos de honra.

No filme, Sanada é um médico alcoólatra e insatisfeito que vive na periferia, atendendo pessoas pobres. Especialista em tuberculose, o doutor recebe, no meio da noite, o jovem yakuza Matsunaga, identificando nele os primeiros sintomas da temível doença. O filme retrata a busca do doutor em ajudar o gângster, com os conflitos girando em torno da autodestrutividade do paciente.

As forças americanas não são retratadas diretamente no filme principalmente porque Kurosawa ainda estava historicamente próximo da ocupação. Logo, as consequências da guerra aparecem muito mais de maneira alegórica e não diretamente. Nessa chave, Kurosawa utiliza toda força dos recursos do cinema para potencializar o simbolismo do seu filme, com planos arrojados, nos quais os corpos em cena, principalmente o de Toshirô Mifune, ganham uma espécie de ondulação sofisticada, seja no embaraçar dos cabelos ou em sua inclinação poética.

O estilo de Kurosawa é potente ao retratar de forma bela uma realidade pessimista, mas sem deixar o espectador esquecer o lado grotesco daquele mundo. Quando Sanada vai brigar com o irmão mais velho que está tomando o seu lugar na Yakuza, a briga não movimentos belos de arte marcial, mas um ritmo visceral, cuja crueza é acentuada quando um balde de tinta próximo aos dois é derramado e suja todo o local. Mas, ainda assim, há uma beleza no corpo de Mifune, que se arrasta pelos cantos do enquadramento como alguém que está morrendo e dançando ao mesmo tempo. Aqui, a beleza não está necessariamente na harmonia, ainda que nem mesmo o caos seja desordenado. Os paradoxos visuais atingem o espectador.

Dramaturgicamente, o simbolismo do filme é intenso pois os personagens parecem se mover mais por uma força transcendental do que por vontades próprias. Ou seja, apesar do filme se passar no século XX, os personagens remetem a entidades trágicas e fatalistas, como se eles já tivessem os destinos selados. Não há nenhuma explicação lógica para a obsessão de Sanada em ajudar o seu paciente, nem para a insistência de Matsunaga em se jogar em uma forma de vida que irá intensificar a sua tuberculose; eles “simplesmente” são o que são.

Mas apesar do distanciamento dos personagens, eles estão claramente situados no Japão do pós-guerra, com os jovens usando jaquetas de couro a-la James Dean e com uma máfia poderosa tomando conta da vida cotidiana.

A falta de sentido da vida dos personagens de O anjo embriagado é situada em uma época histórica clara, ainda que não tenhamos acesso aos acontecimentos históricos que a delimitaram. Conhecemos somente as suas consequências. O visão de Kurosawa é pessimista ao retratar um médico obcecado em curar um paciente que não se importa em viver. As falas que ele dirige aos seus pacientes parecem exprimir conselhos aos japoneses daquela época: “Durma e sonhe com a sua infância”. O conselho já traz em si a aceitação de um diagnóstico, pois se sentir bem no presente parece impossível.

O contraste entre passado e presente no filme é paradoxal. Os mafiosos do passado representam, de certa forma, o velho que não tem mais lugar no presente. Sanada afirma ao velho yakuza que retorna em busca da mulher responsável pela sua prisão: “As coisas mudaram desde que foi preso. Suas manias feudais não colam mais”. No entanto, ainda assim, o mundo representado do filme claramente demonstra que, ao retornar, essa força do passado consegue resgatar o seu poder, mesmo em outro contexto. É como se a água lamacenta que inunda a imagem de O anjo embriagado fosse de fato um novo elemento na vida daqueles japoneses, mas que claramente não é isenta dos vícios de antigamente. É uma nova forma de contaminação, uma nova forma de opressão.

O personagem Sanada também apresenta alguns paradoxos. Crítico dos códigos de honra, a forma obsessiva como ele busca curar os seus pacientes segue, de certa forma, um código de honra próprio, de modo que ele não quer curar somente o corpo. Se quisesse somente ser uma pessoa bem sucedida, ele “seria um médico da alta sociedade com um consultório sofisticado”.

Talvez uma breve explicação para esse desvio esteja em um comentário de Sanada sobre Matsunaga: “Não é somente os pulmões que estão doentes. É como se ele estivesse doente até a alma.” Buscar curar essa alma contaminada também era um dos objetivos do doutor. No entanto, Sanada também afirma: “Os sacrifícios humanos não estão mais na moda. Os japoneses fazem tantos sacrifícios sem sentido.” A fala pode ser dirigida tanto aos personagens do filme quanto aos seus espectadores da época. No Japão do pós-guerra, não havia espaço para retóricas sobre o sacrifício. No entanto, ainda assim, o doutor que apresenta esse diagnóstico melancólico e ácido também realiza alguns sacrifícios dignos, ainda que esta dignidade seja enlameada e consciente da sua inutilidade e dos seus perigos.