A segunda metade da década de 1990 foi assombrosa para a sociedade. A proximidade da virada do milênio deixou as pessoas receosas do que poderia ocorrer. Nostradamus profetizava que o mundo estava prestes a chegar a seu fim. As novas tecnologias da informação pareciam que estavam para acabar com a possibilidade da chegada do Bug do Milênio. O medo estava tão em alta que afetou até o mundo brilhante de Hollywood, especialmente no ano de 1999, marcado pelo lançamento de produções que não viam o futuro da sociedade com muito entusiasmo. Filmes como Clube da Luta, Matrix e Beleza Americana foram lançados no último ano do milênio.
Nesse mesmo ano, o diretor Paul Thomas Anderson lançou seu terceiro longa: Magnólia. O filme traz diversos questionamentos típicos do período e que também foram esboçados nos títulos citados anteriormente. Tendo como diferença de, numa época em que tudo caminhava para um ritmo mais acelerado, ser uma produção de quase três horas de duração. Além de um roteiro com uma rede de personagens com dramas que se tocam, a culpa cristã, uma busca de padrões a serem seguidos e tantas camadas que é impossível absorver tudo vendo apenas uma vez. Vinte anos após seu lançamento, Magnólia ainda é envolvente e tão surpreendente quanto presenciar uma chuva de sapos caindo dos céus.
De uma forma geral, dentre as lançadas à beira da virada do milênio, talvez Magnólia seja a produção que melhor define o momento. A começar pela ideia de rede, de histórias interligadas. Um produtor de TV está a beira da morte e tem como último desejo rever seu filho. O apresentador de um dos seus programas tem uma doença grave e quer redenção de seus pecados. Um dos participantes deste programa quer ter o direito de ser uma criança normal. A filha do apresentador tem sérios problemas emocionais e abusa do uso de drogas. E por aí vai. Uma rede de relacionamentos vai se formando ao longo do filme bem parecido com o que começava a ocorrer na realidade. Após a década de 1990, o mundo se torna efetivamente globalizado e os acontecimentos que aparentemente não tem relação, começam a afetar diferentes lugares e situações do mundo. Muito graças a ascensão da internet a partir desse período. Economia, costumes, modos de vestir e questões sociais deixam de se restringir apenas a um local e passam a ser mundiais.
A produção também é um exemplo de um cinema pós-moderno. Nessa época em que as conexões e o sistema de rede começam a funcionar efetivamente, as artes começam a se relacionar de forma extra obra. A ideia do modernismo de obras originais perde força e a referência passa a ser usada como forma de expressão. No caso de Magnólia temos o videoclipe que em si já é um produto pós moderno, como um dos elementos do longa. Ao mesmo tempo em que o filme tem planos longos típicos da linguagem do cinema, ele também traz momentos de montagem rápida e planos curtíssimos, típicos da linguagem do videoclipe. Isso chega a um ponto de, em um determinado momento do filme, o diretor encaixar literalmente um videoclipe no meio, com todos os personagens cantando a música Wise Up, da cantora Aimee Mann que compôs a trilha do filme. Aliás, esse momento e a trilha são lindos.
Outra característica do pós-modernismo na arte é a auto-referência. Por exemplo, em um determinado momento do filme o enfermeiro Phil Parma (Philip Seymour Hoffman) tenta realizar o último desejo de seu paciente, Earl Partridge (Jason Robards), que é rever seu filho pela última vez. Numa tentativa desesperada de entrar em contato com Frank T. J. Mackey (Tom Cruise), filho de Earl, que é famoso por dar palestras ensinando homens a conquistar mulheres, ele diz ao telefone com o atendente: “Essa é a parte do filme em que você me ajuda”. Essa cena dura um certo tempo e o personagem usa a auto referencia do universo fílmico para convencer o atendente a passar o recado diretamente ao Frank. Dá até um nó na cabeça de tão longe que a referência vai.
“Sei que parece tolice e que posso parecer ridículo… como se fosse cena de um filme em que o cara tenta contatar o filho. Mas é essa a realidade. Acho que há essas cenas nos filmes porque elas são verdadeiras. Porque realmente acontecem. E, você tem que acreditar, isso está realmente acontecendo. Posso lhe dar meu telefone. Você pode checar seja com quem for e retornar minha ligação. Mas não me deixe na mão, esperando. Está bem? Por favor. Eu estou… Por favor. Sabe, esta é a cena do filme na qual você me ajuda.” Phil Parma (Philip Seymour Hoffman) em seu diálogo pós-moderno em Magnólia.
É interessante perceber também que a televisão é o elemento que une toda a história. Os acontecimentos giram em torno de um programa chamado “O que as crianças sabem?” e que os personagens do filme são, participantes, seus pais, o produtor e seu filho, o apresentador e sua filha ou expectadores do programa. Na época do lançamento de Magnólia, a TV era o veículo que tinha mais potência. Tanto como transmissão de informações e opiniões como de linguagem. O videoclipe que, como dissemos, foi usado como elemento da produção, é um produto genuinamente televisivo. Tanto que ganhou um canal quase que exclusivamente para ele e que alcançou seu ápice na década de 1990: a Music Television ou MTV. Do meio dessas produções ainda surgiram nomes que marcariam o cinema nas décadas seguintes, como David Fincher e Michel Gondry.
Assim como em outras produções de Paul Thomas Anderson, a paternidade é um complicador aqui. A maioria dos personagens enfrenta sérios problemas na relação entre pai e filho. Como, por exemplo, Claudia Gator (Melora Walters) e seu relacionamento conflituoso com seu pai Jimmy Gator (Philip Baker Hall) ou o pequeno Stanley Spector (Jeremy Blackman) e seu exigente e explosivo pai Rick Spector (Michael Bowen).
O cristianismo e mais fortemente a culpa cristã, presentes inclusive em outros filmes do diretor e talvez de forma mais evidente em Sangue Negro (2007), aparecem aqui com personagens dizendo isso a plenos pulmões. A personagem Linda (Julianne Moore) se vê assombrada pela culpa ao ver seu marido à beira da morte. Seu objetivo ao casar com o rico e já idoso Earl Partridge, era ficar com sua herança após a sua morte. Porém, pouco antes dos seus últimos momentos de vida, ela descobre o amor por ele e toda a traição dela e os demais atos libidinosos que cometeu durante seu casamento, começam a atormentá-la de forma tão forte que ela tenta inclusive abrir mão da herança que está prestes a receber. Já no caso do policial Jim Kurring (John C. Reilly) o cristianismo parece surgir de forma, digamos, positiva. O personagem sempre clama pela proteção divina e tenta entender os acontecimentos de sua vida segundo a vontade de Deus.
Um dos personagens mais interessantes e de certa forma, meio proféticos é Frank T. J. Macky. Ele é uma espécie de coach que ensina os homens a seduzir as mulheres com técnicas bem machistas desenvolvidas por ele. Esse movimento coach já existia a um tempo mas, no mundo atual, pós advento da internet, foi potencializado e esses personagens constantemente aparecem por aí e até viram memes nas redes. Mais interessante ainda é usar justamente Tom Cruise como Frank. Na década de 1990 ele era um dos astros do momento, um sex symbol ao lado de outros como Brad Pitt e Leonardo Dicaprio. Dependendo do ângulo que se olha, é possível imaginar claramente Tom se comportando exatamente como Frank na vida real. Esse personagem simboliza também certa crise nos homens que, devido aos questionamentos do feminismo e as mudanças sociais, se vêem perdidos buscando algum padrão de masculinidade a ser seguido.
O cristianismo se torna carne quando uma citação bíblica aparece bem na nossa cara. Em determinada parte do filme, temos a famosa chuva de sapos. Chuva essa que é bem conhecida na passagem da Bíblia sobre as sete pragas do Egito. Cientificamente falando é possível que um evento desse tipo, apesar de raro, possa acontecer. Ações violentas dos ventos podem fazer com que esses animais sejam levados a grandes altitudes e despejados em longas distâncias. Mas, no caso real, poderiam contar com diferentes animais como peixes e aves que dificilmente sairiam vivos ou inteiros.
Em Magnólia, a ideia é realmente fazer uma ligação aos acontecimentos bíblicos. Inclusive, em diversos momentos do filme vemos a aparição dos números 8 e 2. Seria uma referência à passagem Êxodo 8:2: “Se você não quiser deixá-lo ir, mandarei sobre todo o seu território uma praga de rãs”. Por exemplo, numa das cenas do filme, uma das pessoas da platéia levanta um cartaz que literalmente diz essa passagem e o mesmo é tomado por alguém da produção. No início, numa história contada pelo narrador sobre um incêndio em uma floresta, um dos aviões utilizados para apagar as chamas tem os números oito e dois pintados.
É interessante perceber que toda a trama e a construção dos personagens são mostradas através de ações e pequenos momentos de diálogo. Sobre o enfermeiro Phil Pharma, por exemplo, descobrimos que ele é um homem solteiro e que provavelmente já se interessou pelos métodos de Frank T. J. Mack através dos diálogos com seu paciente Earl Partridge. Em um determinado momento, o paciente começa a falar coisas sobre a vida e sobre a mulher que teve um dia. Ele pergunta a Phil se ele tem uma namorada, ele responde que não, mas está trabalhando nisso. Quando o senhor revela que seu filho é Frank ele fica surpreso, demonstrando que já conhecia o trabalho dele e sabia exatamente onde encontrar informações sobre um possível contato com ele. Em seguida o vemos pedindo revistas masculinas adultas pelo telefone, onde ele encontra o contato para falar com o coach. À primeira vista parecem ser informações irrelevantes de serem sublinhadas aqui, mas olhando como um todo, diálogos como esse dão consistência ao personagem e aproxima mais a produção a ideia de “a vida como ela é”.
Além de todos esses fatores, Magnólia, assim como os outros filmes lançados no período, marca o fim da era dos grandes astros de Hollywood como principal chamariz de público. No sentido de que, até a década de 1990 os grandes lançamentos estavam centrados mais nas figuras dos grandes atores como Tom Cruise, Keanu Reeves, Sandra Bullock e Julia Roberts. A partir dos anos 2000 a mina de ouro dos grandes estúdios passou a ser as franquias. Filmes como X-Men – O filme (2000), O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel (2001), Harry Potter e a Pedra Filosofal (2001) e Homem-Aranha (2002), marcam o início de novos tempos em que adaptações literárias e de quadrinhos ditariam os Blockbusters. Mas aí, já é assunto para outra conversa.