Frederico Cabala
O percurso dos Beatles pelo cinema pode ser visto como uma via de direção contrária ao aprimoramento de seus discos. Enquanto seus álbuns pareciam sempre surpreender pela evolução estética um após outro, o quarteto inglês teve em sua primeira aventura fílmica aquela experiência de maior brilho: Os Reis do Ié-Ié-Ié (A Hard Day´s Night), de 1964.
Seguindo os passos de Elvis Presley, que percebera anos antes o poder de difusão musical do cinema, os Beatles vislumbraram na sétima arte uma sensacional estratégia de marketing para a carreira. O que, nessa época, ajudaria a consolidar o fenômeno pop da beatlemania.
Na realidade, mais que um desejo verdadeiro de fazer cinema por parte de John, Paul, Ringo e George, o que motivou a inserção da banda nas telas foi o interesse da indústria fonográfica, sobretudo dos EUA. Quem distribuía o catálogo musical do grupo nos Estados Unidos, então, era a Capitol/EMI. Porém, havia uma brecha no contrato do quarteto com a empresa — o acordo não abrangia “trilhas sonoras de filmes”. Aí que a produtora United Artists entrou em cena.
O interesse cinematográfico, portanto, parecia ser secundário diante da possibilidade rentável que significavam os direitos de lançamentos de músicas dos fab four. O diretor da United Artists na Europa chegou a afirmar, inclusive, que “nossa divisão de gravação espera obter a distribuição da trilha sonora nos Estados Unidos e o que perderemos com o filme teremos de volta com o álbum”.
Assim, a produtora optou pelo baixo orçamento de “somente” 500 mil dólares, forçando o filme a ser rodado em menos de dois meses, em preto e branco, e com roteiro e direção que uniam técnicas do cinema-verdade a um humor improvisado que lembra o dos irmãos Marx.
O cerne do enredo é, basicamente, o grupo sendo intérprete de si mesmo em meio à ascensão supersônica da fama e os desdobramentos bons e ruins causados pelo sucesso quase instantâneo.
O diretor Richard Lester e o roteirista Alun Owen, bastante ligado a Liverpool, captaram no filme os traços de espontaneidade, energia e juventude que eram marcas dos Beatles já perceptíveis em entrevistas e shows. Estão bem registradas as constantes brincadeiras e a agilidade em dar respostas criativas a perguntas da imprensa, isso tudo carregado do peculiar sotaque de Liverpool.
O filme tem início com as notas da música-tema enquanto os quatro correm de uma multidão de fãs — imagem-síntese das experiências que viviam — em direção a um trem que os levariam de Liverpool para Londres, onde fariam aparição em um programa de TV.
Do começo ao fim de Os Reis do Ié-Ié-Ié, entre um destino e outro, surgem muitas músicas e diversos imprevistos. Sendo os principais causados pelo personagem fictício do avô de Paul, John McCartney, interpretado por Wilfrid Brambell, que por meio de uma excelente atuação centraliza bons momentos do filme em torno de sua figura.
Falando em atuação, é injusto não mencionar a surpresa com os quatro Beatles. Facilitados pelo roteiro, que baseou as participações dos rapazes em curtas frases, não os obrigando a decorar longas falas, todos se saem bem em falas pontuais e expressões espontâneas, com destaque para John e Ringo.
A combinação entre inventividade, ritmo frenético de filmagem, leveza do humor e proximidade do tema, resultaram em um inesperado — ao menos para a produtora! — sucesso do filme perante a recepção crítica. Os Beatles, que então despontavam para o mundo com canções e atitude, pareciam estar no momento perfeito para encenar o próprio novo universo em um roteiro simples, mas significativo para eles mesmos e o público. O que não se repetiu em trabalhos posteriores da banda no cinema.
Os Reis do Ié-Ié-Ié foi indicado a duas categorias no Oscar de 1964, Melhor Roteiro Original e Melhor Trilha Sonora. Frequentemente, até hoje, o filme figura em listas das melhores comédias inglesas. Orçado inicialmente em 500 mil dólares, com expectativa de prejuízo, a produção rendeu mais de 12 milhões de dólares. Multiplicação de cifras que é proporcional ao crescimento do espaço do grupo na indústria cultural de todo o mundo no período. A boa estreia no cinema certamente foi ingrediente que ajudou o quarteto inglês a virar lenda.
Você sabia?
– George Harrison conheceu sua primeira mulher, Pattie Boyd, durante as gravações do filme. Ela fez o papel de
uma garota do trem que desperta interesse dos Beatles.
– No Brasil, o filme foi chamado de “Os reis do Iê-Iê-Iê”. Em Portugal, acreditem, deram o nome de “Os Quatro Cabeleiras do Após-Calypso”.
– Richard Lester parece ter aprovado o trabalho de Lennon no cinema. Em 1966, John atuou na comédia How I Won The War, dirigida por Lester.