Em 2017, o famoso disco da banda inglesa Radiohead, OK Computer completou 20 anos. Para comemorar, o grupo lançou uma edição especial do álbum chamada OKNOTOK com uma porção de músicas novas e ainda videoclipes dessas. Uma delas foi Man of War, canção que a banda já tocava nos shows a um tempo, mas só agora foi lançada oficialmente com gravação de estúdio e um clipe que iremos analisar a seguir.
O vídeo conta a história de um homem comum tentando sobreviver a uma perseguição que aqui, é possível ver de duas formas. A primeira, digamos mais “patológica”, é a de um esquizofrênico tentando lidar com as pessoas que só ele consegue ver. A segunda, mais “metafórica”, como de um homem tentando lidar com suas preocupações, suas paranoias pessoais, até a aceitação de que elas não vão deixar de existir e ele precisa encara-las. É algo que o próprio personagem criou e que ele está à altura de enfrentá-las.
A segunda é mais próxima da vibe do Radiohead nas suas letras e em outros clipes da banda como Just e Paranoid Android. Visto isso, de que forma esses sentimentos são expressos no vídeo, sem usar um único diálogo e com uma música em outro idioma? Assista e a seguir, analisaremos como isso acontece.
A LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA
Para melhor análise do clipe, iremos utilizar conceitos da linguagem cinematográfica. O primeiro é o de Plano-Sequência. A conceituação de tipos de plano no cinema é complexa e tem diversos desdobramentos dentro do campo teórico, pois cada autor propõe identificações e reflexões diversas. Para o nosso caso, vamos conceituar plano-sequência como: o plano que capta uma sequência inteira de acontecimentos sem ter nenhum corte. Diferente de um plano longo, em que não existe uma sequência de acontecimentos sendo captada, mas um mesmo quadro que se prolonga por um longo período. Uma bom exemplo de plano-sequência, ainda no universo dos videoclipes é o vídeo da canção Oração, da banda nacional A Banda Mais Bonita da Cidade, que ficou famoso há uns anos e foi captado inteiramente em um único take de 6 minutos de duração.
Aos elementos constituintes do plano, usaremos o nome de mise en scène. Esse termo em francês, significa algo como “colocar em cena”. Esse termo surgiu no teatro, num período em que as peças tentavam eliminar o diálogo que, inicialmente era tido como garantidor de excelência da peça, e utilizar mais a imagem, o que era visto, para passar sentimentos e ideias. No cinema, esses elementos são a fotografia, figurino, iluminação, interpretação e etc.
A mise en scène teatral diferencia da do cinema principalmente por se tratar de modos artísticos diferentes e cada um tem suas próprias especificidades. Para o cinema, vamos explorar principalmente a composição dos planos, de que forma a cena foi filmada para passar a ideia, o sentimento pretendido. Tendo isso em vista, pensaremos: o tipo de enquadramento (planos abertos, fechados, etc.), o ângulo que a câmera foi posicionada, iluminação, atuação e cenografia e a montagem. Apesar dessa ideia de plano-sequência, é possível encontrar uma sucessão de planos dentro de um mesmo take. Com isso, faremos recortes destacando alguns quadros para discutir as ideias contidas neles.
Parece meio óbvio, mas muitas vezes não pensamos a respeito do que vemos, e cinema é imagem em movimento. Se na literatura é necessário passar ideias e sentimentos com palavras, aqui é necessário fazer isso com imagens. Uma obra audiovisual bem executada é aquela que não necessita de palavras para ser entendida.
DESTRINCHANDO O MAN OF WAR
O clipe de Man of War é realizado utilizando dois planos-sequência filmados no mesmo local, mas em períodos diferentes. Um se passa durante o dia, com o céu claro e outro à noite, com a rua mal iluminada. O vídeo inicia nos mostrando como será sua dinâmica. O contraste entre dia e noite, claro e escuro, de um mesmo personagem, fazendo movimentos complementares nos dois tempos. Logo de início, já é possível criar uma ideia, através dos planos, de que a noite o personagem vive uma situação tensa e de dia, mais calma. O principal elemento indicativo disso, é a atuação do personagem que será o primeiro elemento destacado.
As expressões faciais e a forma com que o personagem interage com seu jornal nesse primeiro momento, demonstram o estado de espírito que ele se encontra. Este item é importante para servir como resultante de tudo o que está presente no universo diegético do clipe. O personagem reage ao que lhe é posto, suas expressões e movimentações dentro do quadro nos indicam de que forma ele se sente perante a isso tudo nos dois tempos. Até mesmo a movimentação dos demais personagens é diferente nos dois universos. No claro, tudo parece mover em ritmo mais lento, harmonizado. Já no escuro é mais acelerado e fora de controle. É quase possível ver a pulsação acelerada do personagem. Os planos 1 e 2 abaixo, são os que trazem esse primeiro momento em que nós somos apresentados a mecânica do clipe. Também exemplifica a função da atuação no quadro (guarde o plano 1, vamos precisar dele mais a frente).
É importante ressaltar que o efeito, a percepção da dualidade de emoções no personagem, surge devido à oposição ou junção dos dois quadros. O sentimento invocado no personagem em cada uma das situações é capaz de gerar um terceiro, que é sentido não pelo personagem, mas por nós espectadores. Ou seja, aqui, a montagem é um elemento importante para nutrir a reação do espectador perante à obra.
DUAS PERCEPÇÕES DE UM MESMO CENÁRIO
O segundo item a ser destacado é o entorno do personagem. O cenário nos dois universos é o mesmo, são os elementos postos, ou a ausência deles, que são importantes para criar a atmosfera do ambiente. Em um, o protagonista está rodeado de pessoas felizes, praticando esportes e interagindo (Plano 3). Inclusive, ele recebe o sorriso de uma garota que o cumprimenta amigavelmente. Na parte da noite, ele se encontra sozinho, sem qualquer possibilidade de uma interação humana (Plano 4). Nas ruas não temos sequer a movimentação de carros.
Os diferentes tipos de fotografias nos dois momentos, são o verniz que cria a atmosfera do clipe. Um lado é predominantemente iluminado pela luz do sol. É possível ver com clareza todos os elementos presentes em cena. Enquanto isso, o segundo é rodeado de sombras e a pouca luz que existe, só acentua ainda mais esse aspecto sombrio. Isso me fez pensar nesses ambientes que temos em nossa cidade. A diferença que é visitar a mesma pracinha do nosso bairro na parte da manhã e a noite. São atmosferas totalmente opostas e que foram bem construídas nas imagens desse clipe.
LUZ E SOMBRAS
Agora, destaco um dos planos que mais interessantes. Ele marca o momento em que as coisas realmente começam a acontecer e a paranoia se torna mais intensa. O elemento utilizado para demonstrar esse perigo eminente é a sombra. Essa sombra, que surge como presságio de algo maligno, já foi utilizado, inclusive, em outras ocasiões cinematográficas como no movimento do Expressionismo Alemão, em que luz e sombras eram elementos fundamentais da construção dos filmes. Ela surge também em outras ocasiões como na cena do chuveiro em Psicose (1960), de Alfred Hitchcock. Enquanto Marion Crane (Janet Leigh) toma seu banho tranquilamente, nós espectadores vemos uma sobra ameaçadora surgir por trás das cortinas do banheiro. O que não é um bom sinal para a moça.
Voltando ao clipe, na parte escura do plano-sequência, vemos o protagonista caminhando apressado enquanto uma sombra se aproxima por trás dele. Como nos planos citados, é um prenúncio de que algo de ruim está por vir. A sombra se torna maior e mais ameaçadora no quadro, mas some antes que possamos identificá-la. Aqui inicia-se a perseguição que vai se arrastar por todo o clipe. Ainda não vemos exatamente quem o persegue, mas a sombra já demonstra uma ameaça eminente. E o pior, o corte do plano, sem mostrar a cabeça do protagonista, nos deixa em dúvida se ele identificou quem está o seguindo. Esse é um dos planos mais intensos e interessantes nesse clipe. Tanto que ganhou um espaço só para ele.
PARANÓIA CRESCENTE
Nos planos seguintes, são fornecidos mais elementos para reforçar a crescente paranoia do personagem. Durante seu percurso, na fase clara, ele vê que alguém deixou o telefone cair enquanto passava de bicicleta. Ele corre para alcançar a pessoa, mas sem sucesso. Ao mesmo tempo, em sua fase escura, ele simplesmente começa a correr sem uma razão aparente. Quando nos é mostrado a visão do personagem sobre o celular, na parte clara vemos um papel de parede de uma pessoa, provavelmente a dona do celular. Na parte escura, é o protagonista que se vê na tela, no parque com seu jornal do começo do clipe. (Lembra do Plano 1 que pedi para guardarmos anteriormente? Olha ele aí na tela do celular).
Aqui são utilizados planos fechados, que servem para ressaltar algum objeto ou detalhe, por isso podem ser chamados também de plano detalhe. Nesse caso, ele proporciona a nós espectadores, o ponto de vista próprio do personagem. O fato de o telefone desaparecer do lado claro, quando o personagem o solta no chão, é um dos primeiros indícios de que um lado já está interferindo no outro. A paranoia está tomando traços de realidade na cabeça do personagem, alguma espécie de crise está prestes a iniciar.
É interessante que os planos 6 e 7 se encaixam quase que perfeitamente causando um choque de imagens. Idêntico ao que acontece nos planos 3 e 4. Está instaurada de fato a possível paranoia do personagem. Sem necessitar de diálogos, já entendemos que o personagem se sente perseguido. Mas nós não temos certeza se isso realmente está acontecendo ou se é somente na mente do personagem.
O PERIGO SE TORNA REAL
Nos momentos seguintes, nós conhecemos quem é o dono da sombra que tinha aparecido no plano 5. Vemos que é um outro “homem comum” e não um monstro ou alguém com uma aparência assustadora. Mais uma vez, o choque de dois planos (8 e 9), reforçam a ideia de que aquilo faz parte do lado sombrio do protagonista.
No plano 9, a posição que a câmera se encontra, filmando as costas do protagonista e com o plano um pouco mais aberto, proporciona que o vejamos de corpo inteiro e um pouco menor. Já quando o outro personagem surge, bem próximo da câmera ele se torna uma figura maior, mais ameaçadora no lado sombrio. As suas roupas pretas, em contraste com a do protagonista e em combinação com o lado sombrio, fazem com que a figura fique mais ameaçadora ainda. A atuação deste segundo, intensifica as coisas ao andar com o passo rápido. Os movimentos dos braços também passam certa decisão quanto ao destino de nosso protagonista. Isso não parece que vai ter um final feliz. A mise en scène, mais uma vez, mostra a que veio.
CORRIDA PELA SOBREVIVÊNCIA
A partir daqui, veremos a intensidade do lado sombrio aumentar. A cada troca de cenários, vemos surgir mais perseguidores do lado negro do personagem, a ponto de, finalmente, contaminarem o seu lado claro. Está instaurado o caos. Os dois lados agora estão em pura tensão. O que antes fazia parte apenas de um lugar sombrio, agora toma forma e o medo se torna real.
Esse é o momento que o medo se torna real. Surgem as crises de ansiedade, as síndromes do pânico e qualquer outra coisa que seja o medo se manifestando de forma física. Sentimentos que são bastante presentes na sociedade atual e que, conforme dito anteriormente, estão presentes em outras canções do Radiohead.
O MEDO SE TORNA REAL
Depois de instaurada a paranoia, a intensidade é transmitida com muita correria e pela total perda de estabilidade da câmera na mão. Esse recurso já havia sendo utilizado desde o início do clipe, mas de uma forma menos perceptível. Ele ganha uma função mais narrativa nesse “chacoalhar” que mostra a própria instabilidade do protagonista. Uma forma de demonstrar como as coisas ficaram realmente tensas a ponto de serem insuportáveis.
Depois de tanto correr e ainda ser perseguido, ele se rende e deita em um trilho de trem. Sua posição (Plano 14) o mostra totalmente vulnerável, entregue à própria sorte. É interessante a utilização do trilho de trem, primeiro por questões estéticas. Imprime um senso de profundidade interessante ao plano. Se durante boa parte do clipe, víamos o personagem andando junto a uma parede, deixando a imagem bem achatada, aqui ele mostra uma espécie de “fundo infinito”. Segundo, porque essa profundidade pode ser um signo que essa fuga nunca terá fim. O personagem pode correr o quanto quiser, mas aquelas figuras continuarão a persegui-lo. Vendo isso, ele se entrega.
Enfim, o personagem resolve encarar de frente quem o perseguia, seus medos e paranoias. O ângulo que a câmera fica nesse plano (como no plano 9), faz com que as figuras se tornem muito maiores e mais volumosas que o personagem principal. O olhar do protagonista de baixo para cima o coloca numa posição submissa.
Mas aí, não acontece nada. As figuras não reagem, apenas observam o personagem no chão que resolve se levantar. Ele os encara e parece perceber que os seus medos não eram muito maiores que ele e que tinha força suficiente para poder enfrentá-los. Agora é seguir a vida tentando lidar com eles.
Além de todo esse trabalho imagético, o ritmo dos planos surgindo na tela, segue o tom da música. Certamente foi um trabalho e tanto fazer a construção desses planos. Inclusive, o diretor do clipe, Colin Read, declarou que foi parar no hospital por ter ficado tanto tempo filmando o projeto. Mas, todo o esforço valeu a pena.