Por Luciana Ramos

A Jasmine de Cate Blanchett, que acaba de ser agraciada com um Oscar, lembrou a muitos Blanche Dubois, mais famosa personagem de Tennessee Williams pelos seus ares refinados e incapacidade de enfrentar a realidade. O fato de uma obra continuar a ser lembrada e referenciada é a prova máxima da sua excelência e é exatamente isso que ocorre com Um Bonde Chamado Desejo, filme baseado na famosa peça da Broadway que curiosamente ganhou no Brasil o título Uma Rua Chamada Pecado.

Williams concebeu a história a partir da junção das palavras “Cemitério” e “Desejo”, escritas nos bondes que via passar em Nova Orleans. A oposição de significados o intrigou e levou a escrever um dos maiores clássicos americanos. Blanche Dubois (Vivien Leigh) é uma mulher madura e pernóstica que divide o tempo entre divagar sobre sua mocidade e seduzir os homens ao redor. Ela viaja para visitar a irmã alegando estar de licença do emprego de professora e acaba ficando por meses. Assusta-se com os modos brutos do seu cunhado e acaba interferindo na harmonia conjugal, causando discórdia e conflitos. De um lado, Stella (Kim Hunter) preocupa-se com o estado frágil mental da irmã e é condescendente. De outro, Stanley (Marlon Brando) provoca e confronta a cunhada até enfim descobrir a verdade sobre o seu passado e laçar o seu destino.

Elia Kazan, que já havia dirigido a peça, realizou um ótimo trabalho na adaptação da mise-en-scene teatral para as telonas. Adicionou movimentos de câmera, mas contrapôs os planos mais abertos com closes que pontuavam as ações dramáticas e guiavam os olhos dos espectadores. Porém, o diferencial do filme não é narrativo. Os diálogos de Williams, que colaborou na elaboração do roteiro, são vorazes. Os personagens acusam uns aos outros constantemente com ironias e subtextos. Isso pode ser observado, por exemplo, nas aparentemente inocentes anedotas contadas por Blanche sobre Belle Reeve, antiga propriedade da família, e que servem na verdade para acusar Stella de tê-la abandonado.

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Considerando o teor do enredo e o fato de ter sido feito em 1950, problemas com o Código Hays, censura vigente na época que controlava a “moralidade” dos lançamentos, seriam mais que esperado. O verdadeiro obstáculo apareceu quando a Legião de Decência, instituição católica, desaconselhou os seus fiéis a irem ao cinema devido o conteúdo carnal do filme. Isso acarretou algumas modificações importantes na trama: a homossexualidade do primeiro marido de Blanche foi apaziguada e a cena em que Stanley a estupra é apenas sugerida por um espelho quebrado. Curiosamente, alguns closes considerados lascivos foram cortados na sala de edição. Em 1993, esses rolos foram encontrados e postos de volta; essa é a versão encontrada em Blu-Rays e DVDs. De qualquer modo, o próprio diretor atesta que o entendimento da história não foi afetado na versão original.

No entanto, o responsável pelo verdadeiro choque da audiência foi Marlon Brando, com a sua imponência e o modo como oscilava a crueza de “modos” do seu Stanley Kowalski com a sutileza com a qual expressava os sentimentos do seu personagem. Ele, discípulo de Stella Adler no Actors Studio, trouxe consigo um novo tipo de atuação, completamente diferente da artificialidade que estavam todos acostumados. É interessante observar como ele propositadamente interfere na atuação alheia, de modo a provocar o seu companheiro de cena. Por exemplo, há uma cena em que Stanley discute com a mulher Stella, que arruma a mala da irmã. Brando desfaz o trabalho de Kim Hunter enquanto fala e acentua o nervosismo da atriz, o que acaba contribuindo para aumentar a tensão.

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Vivien Leigh, sua força opositora, desliza de um lado pro outro quase dançando mas consegue, por trás de toda afetação, afastar a sua Blanche gradativamente da realidade, a cada devaneio até o seu completo desligamento.

Uma Rua chamada Pecado é um filme orgânico do ponto de vista estético que firma no embate de personagens opositores. Uma ótima análise do comportamento humano que continua relevante e que foi também o primeiro indício da genialidade de Marlon Brando.

VOCÊ NÃO SABIA QUE…

– Com exceção de Vivien Leigh, que substituiu Jessica Tandy, todos os atores principais do longa já haviam desempenhado os mesmos papéis na Broadway por dois anos, tempo que a peça ficou em cartaz.

– Marlon Brando, que até então era desconhecido do grande público, ganhou o papel na produção da Broadway depois de ir visitar a casa de Tenessee Williams e impressioná-lo consertando goteiras, entupimentos e outros problemas de encanamento.

– Os atores Burt Lancaster e John Garfield chegaram a ser cogitados para o papel de Stanley Kowalski.

– Alex North, criador da trilha sonora, foi indicado 15 vezes pela Academia ao longo da sua carreira sem nunca ganhar até ser agraciado pelo Oscar Honorário. Ele foi o primeiro compositor a receber a honraria.

Confira o trailer: