Por Felipe Rocha

Não é uma tarefa fácil dar conta de uma obra como de Guerra e paz, do russo Liev Tolstói. Se o livro já impõe respeito, não só por sua significância para a literatura e a cultura russa, mas também por seu caráter incontestável de clássico, adaptá-lo para a linguagem cinematográfica é uma verdadeira odisseia. Portanto, ao receber o convite para escrever essa crítica, senti todo o peso que o título possui.

O romance é extenso e denso, não é uma leitura trivial de ônibus e, assim como o leitor empenhado em concluí-lo, suspeitei que encarar o filme não seria tampouco um passeio por São Petersburgo e outros cenários da Rússia do XIX. Não me enganei em minhas expectativas: a versão cinematográfica em questão é a monumental produção soviética levada à cabo pelo, então novato, diretor Serguei Bondarchuk e lançado para o público russo como uma série de quatro filmes durante os anos de 1966 e 1967. Foi a mais cara produção realizada na União Soviética e vencedora do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1968. Porém, para compreendê-la é preciso retornar um pouco e acompanhar a sua realização em contraponto a outro longa-metragem homônimo lançado alguns anos antes.

Guerra Fria

Na verdade este filme possui duas histórias distintas e igualmente interessantes: a época histórica na qual narrativa e ação se desenrolam, as guerras napoleônicas; e o seu contexto de produção, em plena Guerra Fria. Em 1959, após algumas visitas entre ambas as potências, incluindo uma visita à Hollywood do próprio Khrushchev (líder soviético no período) e a ida de astros do cinema norte-americano à terra dos sovietes, como Kirk Douglas e Gary Cooper, foi firmado um acordo cultural entre os Estados Unidos e a União Soviética.

Como um dos resultados desta “diplomacia cultural”, filmes ocidentais foram exibidos em solo soviético ainda naquele ano, sendo o primeiro deles Guerra e Paz, décimo quinto filme da carreira do veterano King Vidor (gravou seu primeiro filme aos dezenove anos, sete anos antes do nascimento de Bondarchuk), e estrelando Audrey Hepburn como Natasha Rostova e Henry Fonda no papel de Pierre Bezukhov. O filme de Vidor fora lançado em 1956 e tratava-se, na verdade, de uma produção ítalo-americana, gravado em sua maior parte na Itália, coproduzida pela Paramount Pictures e pela Ponti-Di Laurentiis Cinematografica (a última pertencente ao produtor italiano Dino Di Laurentii, que viria a produzir anos mais tarde, em 1970, o filme Waterloo de Bondarchuk).

Exibido entre agosto e outubro de 1959, o filme atraiu cerca de 31,4 milhões de expectadores, tornando-se um verdadeiro sucesso na terra do regime socialista. Hepburn tornou-se a “queridinha” das plateias russas, influenciando o público feminino no vestuário e corte de cabelo[1].

Audrey Hepburn - Guerra e Paz

O sucesso da adaptação de Vidor do épico nacional russo gerou reações por parte do povo e dos intelectuais soviéticos. Dirigentes e lideranças soviéticas passaram a ver a questão com urgência, diversos cineastas e membros da comunidade cinematográfica, publicaram uma carta aberta, manifestando publicamente o absurdo em que consistia o fato de que uma obra tão importante para o povo russo viesse às telas por meio do ocidente, tornou-se uma “questão de honra para a indústria cinematográfica soviética produzir um filme que ultrapassasse o ítalo-americano em mérito artístico e autenticidade”[2]. Yekaterina Furtseva, então ministra da cultura soviética, deu inicio à urgente produção de uma adaptação que respondesse à produção ítalo-americana e que fosse digna da grandiosidade da obra de Tolstói e do povo russo.

O primeiro passo para começar era a escolha de um diretor para o projeto. Em meio a indicações, tanto de intelectuais como de dirigentes internos da burocracia do estado soviético, Bondarchuk foi o escolhido para assumir a empreitada. Com apenas um filme no currículo, O Destino de um Homem (Sudba cheloveka) lançado no mesmo ano em que a versão de Vidor fora exibida na URSS, Bondarchuk foi sugerido por diversas figuras do meio cinematográfico, já havia recebido o Lenin Prize em 1960 e tinha adquirido prestígio no meio.

As gravações do filme iniciaram-se em 1962, sendo gravado em 70mm, e se concluíram em 1967, quando a quarta e última parte foi exibida para o público soviético, foram escalados para os papeis principais Vyacheslav Tikhonov, como o Princípe Andrey Bolkonsky, Lyudmila Saveleva, como a Condessa Natasha Rostova e o próprio Bondarchuk interpretando Pierre Bezuhkov, personagem que intitula a parte final e que é a espinha dorsal da narrativa.

O Filme

O longuíssima-metragem (se me permitem) abre com imagens panorâmicas das paisagens russas, como que planando entre as nuvens, e sons de trovões, que vão convertendo-se na medida em que os créditos surgem na tela em um sonoro bombardeio de artilharia e de homens e cavalos perecendo em combate, fornecendo já elementos que irão compor o tom da obra.

Como no romance, a história tem início no ano de 1805, em uma festa aristocrática na cidade de São Petersburgo, apresentando os personagens e os posicionando no pano de fundo maior, que é a defesa do território russo contra a iminente ameaça da Grande Armeé, o exército de Napoleão Bonaparte. Apesar do foco maior ao personagem que dá nome à primeira parte – Andrei Bolkonsky – também é aqui que são estabelecidos os fundamentos do filme, não apenas para os personagens, mas também noções do próprio Tolstói a respeito dos conceitos-chave da guerra e da paz.

Acompanhamos, então, o alistamento de Andrei no exército russo sob as ordens do General Mikhail Kutuzov durante a guerra da terceira coalizão (formada entre Áustria, Inglaterra e Rússia, preocupados com a expansão francesa) contra Napoleão Bonaparte, o príncipe parte em uma campanha que termina fracassada na Áustria, participando da Batalha de Schöngrabern e da Batalha de Austerlitz.

A batalha de Austerlitz é um dos grandes trunfos militares e estratégicos de Napoleão. Após derrotar os austríacos em Ulm e ocupar a capital Viena, em 2 de dezembro de 1805, apesar de sua inferioridade numérica, Bonaparte conseguiu destroçar o exército austro-russo. Em meio à batalha, Andrey Bolkonsky é seriamente ferido e equivocadamente dado como morto.

Bolkonsky ferido

Ferimento de Bolkonski

A segunda parte gira em torno da personagem feminina, Natasha Rostova. Em seu primeiro baile, no ano de 1810, a condessa já não é mais a jovem apresentada na primeira parte do filme, ao apresentar-se para a aristocracia russa Natasha mostra a sua evolução para uma jovem mulher. Apaixona-se por Bolkonsky, que retornou, mas traça seu próprio destino após as restrições impostas por seu pai para o casamento. Considerei a sequência do baile como o ponto alto desta parte, sua execução, movimentos, texturas e cores conferem à cena o tom exato que eu esperaria de um baile aristocrático do século XIX. Outra cena importante é a em que Natasha visita o tio, ali a personagem é representada como a verdadeira personificação da autêntica mulher russa.

Intitulada “O Ano de 1812”, a terceira etapa do épico trata justamente da invasão da Rússia pela Grande Armeé de Napoleão. Com um exército de mais de 600 mil homens, Napoleão começou a campanha russa após a recusa do czar em apoiar o Bloqueio Continental antibritânico. As forças russas encontravam-se dispersas, com seus três principais exércitos (o General Barclay, então Ministro da Guerra do Czar Alexandre I, estacionado em São Petersburgo; General Bagration na região central próximo ao rio Nemen e o Terceiro Exército do General Tormasov ao sul, atento à cidade de Kiev) sem poder reunir-se e sem condições de contra-atacar.

Optando por retirar-se para o interior do país, Barclay acabou caindo de seu posto no mês de agosto e o General Kutuzov assume o comando do exército como ministro da guerra. Após avançar pelo território russo sem grande resistência, no dia sete de setembro, às 6h da manhã, Napoleão deu início ao ataque contra as forças comandadas pelo General Kutuzov, estacionado na aldeia de Borodino (cerca de 150 km de Moscou) contando com algo em torno de 150 mil homens e mais de 600 canhões. Napoleão tinha entre 130 e 190 mil homens (com variações de fontes) e 587 canhões. Com aproximadamente 16h de combate, a Batalha de Borodino foi a mais longa e sangrenta batalha das Guerras Napoleônicas.

batalha

batalha 2

Cenas de combate e Bezuhkov em combate

Tanto Bolkonsky, cuja unidade aguardava na reserva, como Bezuhkov, que é enviado para acompanhar o confronto e voluntaria-se para auxiliar na artilharia, participam da batalha. Já haviam ocorrido cenas de batalhas muito bem executadas na primeira parte, mas a batalha de Borodino leva à tela a grandiosidade épica do combate: fotografia impecável, o deslocamento das tropas, as cargas de artilharia e o horror do campo de batalha.

Está tudo ali, grandioso e implacável, na fumaça causada pela pólvora e no terror estampado no rosto dos protagonistas, que encontrando-se cara a cara com a morte tem de enfrentar seus tormentos internos e sobreviver à catástrofe que acontece a seu redor. Napoleão acaba por vencer a batalha, mas a vitória do grande general é uma vitória de Pirro, apesar dos russos perderem quase metade de suas forças em campo (incluindo o General Bagration), suas tropas estavam exaustas e também haviam sofrido baixas severas.

Finalmente, a parte final do filme tem seu foco em Pierre Bezuhkov, que permanece em Moscou após a evacuação da cidade. Assim, quando a cidade é invadida pelo exército napoleônico em 14 de setembro, é encontrada uma cidade quase deserta. Bezuhkov acompanha a ocupação e presencia a cidade em chamas, quando é incendiada pelos próprios russos em retirada. Sem opção, a Grande Armeé começa a marchar em retirada, com o personagem como prisioneiro acompanhando o sofrimento e o desespero das tropas com o severo inverno russo. Por fim, é libertado por um ataque surpresa dos russos e os franceses são derrotados por Kutuzov na Batalha de Krasnoi.

Conclusões

Bondarchuk concentrou seus esforços em realizar um filme que trouxesse verossimilhança histórica, dando especial atenção para que figurino, cenografia, armas, etc, estivessem de acordo com o período retratado. Aqui, o desdobramento da economia estatal, administrativa, burocrática e planejada mostrava suas implicações na produção cinematográfica soviética.

Boa parte dos filmes produzidos então eram encomendas governamentais, o que contribuía para a monumentalidade das produções feitas pelo Ministério do Cinema. Como dito anteriormente, Bondarchuk recebeu um enorme aporte financeiro para seu projeto, e com toda a máquina estatal soviética contribuindo para a realização do filme o diretor pode contar com figurinos e objetos emprestados de museus, soldados do exército enviados para servir como figuração para as cenas de batalha, utilização dos cenários reais da batalha para as filmagens.

Do ponto de vista da historiografia, muito da historiografia mais tradicional russa exalta o caráter mítico das guerras napoleônicas, especialmente os eventos de 1812, sendo que o clássico de Tolstói é visto como um dos mais importantes reforçadores deste aspecto, se baseando na escrita de seu livro em estudiosos que creditam a vitória russa em uma estratégia que combina acidentes e improvisação e exalta o povo russo, a amplitude territorial e o clima hostil.

O filme reforça essas narrativas, evocando o orgulho nacional. Napoleão é uma figura importante no imaginário russo, não apenas como o inimigo, mas por ser um homem comum que conseguiu a façanha de tornar-se imperador. Devido a seu sucesso, muitos jovens do oficialato e da nobreza acabaram por ir à Paris e infundiu nos soldados veteranos, que foram ao front ocidental combater Napoleão, as ideias que foram esmagar, retornando à Rússia com entusiasmo por uma reforma em sua pátria-mãe.[3]

Este é o primeiro dos pontos favoráveis, levando em conta o caráter de resposta da produção, em relação ao filme de Vidor, que se por um lado tem o brilho da produção Hollywoodiana peca pelo formato de “cinemão” ao adaptar uma obra com este peso. Além disso, a versão de Vidor apresenta muitos cortes em relação ao romance de Tolstói, limitando a narrativa e não permitindo uma abordagem aprofundada das personagens.

O filme de Bondarchek consegue dar conta destes problemas. Bem, são 402 minutos de gravação, devo reconhecer que isto ajuda bastante o camarada, além de permitir que o filme tenha a profundidade do romance, desenvolvendo tanto a narrativa como os personagens e possa transmitir ao espectador a grandeza do romance, visível principalmente no desenrolar do papel de Lyudmila Saveleva, que de fato cresceu junto com a personagem (Hepburn já tinha 27 anos quando executou o papel).

Rostova

Primeira aparição de Natasha/Natasha como uma jovem mulher

Além da verossimilhança histórica, Bondarchuk consegue dar conta, além dos desastres da guerra (bem executados no filme de Vidor, mas sem a grandeza desta versão), dos momentos de paz. Os diálogos e cenários são mais fiéis ao livro, com linhas de diálogo transcritos diretamente da obra e quartos e cenários que reproduzem em detalhes as descrições de Tolstói.

O relato de Tolstói dos episódios que culminaram na derrota francesa não traz apenas personagens reais históricos, como Napoleão e Kutuzov, mas também os homens comuns. Tolstói era de uma família pertencente à antiga nobreza russa, passou anos fartos durante a juventude, mas arrependeu-se depois e passou a refletir profundamente sobre o sentido da vida e grandes questões. Herdou uma grande propriedade, onde exerceu ativamente sua atenção para o popular, em questões como a da servidão (assunto polêmico e antigo na Rússia imperial), o levou a montar uma escola para camponeses no terreno ao fim dos anos 50 do séc. XIX. Reconhecido como uma espécie de “profeta extraoficial” tinha ampla influência na consciência moral do povo russo, a despeito de sua excomungação pela Igreja Ortodoxa. Renunciou-se à uma vida ascética, pregando a não-violência (o que gerou troca de correspondência com Mahatma Gandhi) e repensando sua relação com a arte. Viveu seus últimos dias na propriedade, onde foi inclusive filmado no final de sua vida:

Enfim, passados os 402 minutos e com a tarefa concluída, devo advertir que não é um exercício fácil assistir à versão de Bondarchuk de Guerra e Paz. Não é um exercício fácil, mas definitivamente vale a pena, não só pela fotografia incrível, por como a trama se constrói, pelas belíssimas paisagens russas ou a execução primorosa das cenas de guerra. O verdadeiro “esforço de guerra” soviético não foi em vão, a produção é esteticamente e espiritualmente uma obra-prima do cinema russo.

[1] The Telegraph, 25 ago. 1960. “US actress captivates russians” por Reinhold Ensz

[2] Sergei Zhuk (2014) Hollywood’s insidious charms: the impact of American cinema and television on the Soviet Union during the Cold War

[3] BERMANN, Marshal. “Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade”. Companhia das Letras, 2007.

Guerra e Paz é distribuído pela Obras-Primas do Cinema e pode ser adquirido AQUI