Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que jamais se encontra sob outro céu, lugar absoluto, pequeno fragmento de espaço com o qual, no sentido estrito, faço corpo.
Michel Foucault, o corpo utópico, as heterotopias.
É por meio do corpo, território de conflitos internos e externos que a reinvindicação política exala o seu grito de guerra. Um corpo combatente, armado, fundido no outro, em seu semelhante; porém, até no análogo, a diferença emerge. Ora, o que pode ser mais igual, e, ao mesmo tempo, tão dissonante do que um corpo? E qual corpo? De que corpo nos referimos? E, sobretudo, de que modo esse corpo perpassa essas complexidades? É na simetria assimétrica de corpos radicais que 120 Batimentos por Minuto – longa-metragem dirigido por Robin Campillo e vencedor do prêmio Grand Prix no Festival de Cannes – constrói um discurso sublime, com imensa relevância política, tanto em sua forma como em seu conteúdo.
França, ano de 1990, um grupo de ativistas denominados Act Up (em sua grande maioria portadores do vírus HIV) intensifica o seu combate contra um Estado negligente e corporações privadas omissas que se negam à politizarem o debate em relação à epidemia da AIDS no país. O grupo Act Up reúne-se em inúmeros comícios para elaborar estratégias que impulsionem o Estado a posicionar-se a respeito do aumento progressivo da contaminação pelo HIV em homossexuais, drogados, presos e prostitutas. Nessas reuniões, o eixo central se estabelece no debate, vertiginoso, de pautas que promovam uma real política de prevenção. O que 120 Batimentos Por Minuto nos revela é uma juventude política combativa, carregada de vida, mesmo quando a morte parece ser um destino quase inevitável.
Na efervescência dos debates somos apresentados aos personagens principais, Sean e Nathan. Em um relacionamento de sorologia discordante, ou seja, um carrega o vírus e o outro não, o envolvimento amoroso dos dois põe em destaque a problemática do preconceito em relação aos portadores do HIV, de uma maneira sensível onde o que está em jogo é a empatia, a honestidade e, também, a sensualidade.
De uma maneira primordial, as trocas de sequências do filme são sobrepostas ao invés do uso do corte seco. Ao amarrar a narrativa dessa forma, percebemos que o fazer político ocupa todas as esferas da vida cotidiana, sem exceção. No filme, uma manifestação política na rua, se transforma em uma festa e que, ao mesmo tempo, dá abertura para uma cena de sexo. A dança ou para usar um vocabulário gay mais expressivo, a ferveção, acompanha o ritmo dos inúmeros atos políticos. Os batimentos a que se refere o título do filme diz respeito tanto a um coração que pulsa para sobreviver, como à música eletrônica.
E como lutar ou vencer o medo de morrer se a morte persegue constantemente esses corpos fragilizados? Corpos despossuídos, sem direitos, sem validade, errôneos em seu modo de se movimentar, gesticular, falar. Corpos divergentes. Corpos viados. O sangue contaminado é metáfora da vida; vida desviante, mas pulsante. A consciência da morte é propulsora da transformação social radical. Talvez, o filme nos dê a melhor resposta para essa pergunta, pois ao embaralhar os diversos sentimentos como o desejo, o medo, o amor, a fraqueza vimos em 120 Batimentos Por Minuto a constituição de sujeitos complexos em permanente transformação. A cena que melhor representa essa dinâmica talvez seja a do hospital em que Nathan masturba Sean; uma das cenas mais emblemáticas do filme onde vida e morte são alinhadas de um modo excepcional no longa-metragem.
Por ser um filme tipicamente do cinema de ativismo, 120 Batimentos por Minuto cumpre exatamente o que se propõe, ou seja, reconstituir a história, dando ênfase ao problema da discriminação, bem como evidenciar as características de um Estado heteronormativo-opressor e a atuação militante da comunidade gay francesa. O filme retira o fôlego de qualquer espectador, mas em específico, da comunidade LGBTT que se vê na tela, se reconhece e se identifica com as inúmeras questões levantadas no filme.
Assistir a 120 Batimentos Por Minuto é relembrar uma dívida histórica que de algum modo precisa ser revisitada constantemente para promover modificações estruturais que promovam condições materiais para o apaziguamento do preconceito em todas as suas dimensões.