Em 2017, o nome de Stephen King ganhou destaque nos cinemas mais uma vez. Depois da frustração de A Torre Negra, o remake It: A Coisa marcou a história do cinema de horror alcançando a maior bilheteria do gênero. A Netflix entrou no mundo de King em setembro com Jogos Perigosos e agora lança mais uma adaptação, 1922, baseada em um conto do autor e dirigida por Zak Hilditch. Com uma história simples e direta – um fazendeiro confessa o assassinato da esposa – a obra tem o trunfo de assustar o espectador muito mais por acontecimentos ligados à realidade – mostrando as terríveis consequências da cobiça e do rancor – do que pela representação de supostas forças do sobrenatural.
Em 1922, Wilfred James (Thomas Jane) é um simples fazendeiro do sul dos EUA que se vê prestes a ir à Omaha, já que a fazenda onde vive foi herdada por sua esposa, Arlett James (Molly Parker), que não gosta da vida no interior e sonha em abrir uma butique na cidade grande. Contrariado, Wilfred começa a tramar com seu filho Henry James (Dylan Schmid) para assassiná-la e, assim, não mudarem de lugar.
A narração é feita a partir do ponto de vista de Wilfred, que está escrevendo, em um pequeno hotel, anos depois, uma confissão sobre o que aconteceu em 1922. A trama é macabra e, à primeira vista, parece distante da realidade. No entanto, o mais interessante é que Zak Hilditch não pesa o tom do filme, e o processo de questionamento sobre a proposta até a tomada de decisão é realizado de forma leve. O fato consumado é grotesco e sanguinolento, no entanto, o horror se manifesta principalmente nos desconcertantes diálogos entre pai e filho ao conversarem sobre essa ideia. Ambos não são retratados de forma agressiva, já que em muitos momentos estão em um nível de serenidade calculista. Eles não estão em paz com o que desejam, mas também não expõe externamente os monstros que abrigam. Não nos assustamos com assassinos frios, porém, mais com a ideia de que um pai trabalhador e um filho educado podem realmente chegar a cometer o assassinato, sem corresponderem aos estereótipos de crueldade.
A perfomance de Thomas Janes é carregada ao retratar o típico homem do sul, com fortes sotaque e gestos corporais. A entrega intensa é visível e transmite com fidelidade alguns traços característicos. No entanto, é incômodo o contraste entre Thomas e todos os outros atores que contracenam com ele. Seja Dylan Schimid como o filho tímido ou Neal McDonough como o vizinho bem sucedido, todos prezam por uma interpretação sutil, que apesar da intensidade de alguns momentos, não se deixam levar por trejeitos excessivos. Thomas também não vai nesse caminho – ele não cai na caricatura – no entanto, a sua interpretação busca claramente se adequar a gestos do passado, enquanto os outros atores entregam personagens que poderiam existir atualmente, em termos de linguagem corporal.
Logo após o assassinato de Arlette, o clima passa a ficar mais sombrio. Gradativamente, os acontecimentos não seguem em favor de Wilfred e Henry, que se esgotam em sentimentos de remorso e arrependimento. O pai passa a ter visões com a sua esposa retornando dos mortos e sempre acompanhada por vários ratos. Não acredito que estas visões sejam da ordem do sobrenatural, mas configuram mais uma espécie transtorno, já que acompanhamos o filme a partir da perspectiva de Wilfred, e ele é o único a enxergar os animais e o corpo de sua mulher. A fotografia de Ben Richardson acompanha essa transformação sentimental, ao mesmo tempo que segue as mudanças de estação de 1922, mais límpida no “início do ano”, quando o confronto entre Wilfred e Arlett não é tão intenso, e as atividades retratadas são mais diurnas. Após o assassinato, o tempo vai ficando mais frio, e a fotografia escurece, principalmente com as agonias noturnas de Wilfred até ao seu desespero solitário no inverno sulista.
A sutileza do tom da narrativa pode torná-la arrastada, principalmente considerando o último ato da obra, em que há um excesso de informações. A proposta parece se confundir nesse sentido. Se a ideia do filme era retratar a deterioração interna do protagonista, a lentidão se justifica relativamente. No entanto, os desfechos de Henry James e do próprio Wilfred são apresentados de forma repentina, em curtos flashbacks. Esses últimos acontecimentos são tão interessantes que podem criar uma curiosidade no espectador, o fazendo questionar: “Por que o filme não mostrou mais o destino de Henry e ficou tanto tempo na perdição de Wilfred?”. Todavia, esse descompasso é pequeno e não prejudica a experiência.
Ainda que o sobrenatural não mova a narrativa, existe uma força subjetiva que parece dominar os acontecimentos retratados, pois, embora a lei institucional e terrena não descubra o que realmente ocorreu, as vidas de Henry e Wilfred, após a morte de Arlette, configuram uma verdadeira e longa condenação, marcada por perdas, mais mortes e solidão. As intensas reflexões de Henry causam uma espécie de empatia misericordiosa pelo personagem. O assassinato se torna uma ligação mortal e eterna entre pai e filho. O destino dos dois não nos deixa esquecer o que eles são: assassinos, apesar das máscaras que carregam. Ou seja, nós nunca sabemos o que realmente ocupa a mente e o corpo dos indivíduos. Eis o verdadeiro horror de 1922.