Antes de ver o filme, foi uma surpresa para mim ver que como produtores constavam a dupla de diretores Jean-Pierre e Luc Dardenne, consagrados cineastas belgas, de um projeto vindo da Tunísia.
Ao terminar a projeção, não pude deixar de concluir que não poderia ser nada mais lógico, já que este A Amante opera com vários elementos semelhantes aos filmes dos irmãos Dardenne e divide os mesmos interesses em não apenas analisar um indivíduo em particular, mas realçar seus dramas mundanos e como estes são um pesar dramático para quem está na tela.
No caso, se trata do jovem Hedi (Mastoura) que além de estar em um aborrecido emprego como representante de vendas de uma marca de carro, vive com sua controladora mãe (Bouzouita). Não apenas ela se encarrega de cuidar do dinheiro do filho, como é responsável por arranjar um casamento para ele com Khedija, que por mais que tenham uma relação boa, não possuem muita intimidade além de conversas noturnas no carro de Hedi.
Perceptivelmente infeliz, quando Hedi viaja a trabalho para o litoral, acaba por conhecer a interessante Rym (Messaoud), uma moça que trabalha no hotel onde se aloja. Não demora para os dois passarem a se envolver e isto fazer Hedi questionar como tem sido sua vida e como pretende leva-la.
Primeiro longa-metragem roteirizado e dirigido por Mohamed Bem Attia, a premissa é totalmente simplista e que em diversos momentos poderia cair em armadilhas melodramáticas ou esquemáticas para injetar obstáculos artificiais e absurdos que o casal precisaria enfrentar para ficar unido. Porém, Attia é sensível o suficiente para tornar a narrativa bastante humana e emotiva.
Com uma tradução brasileira do título bastante errônea (no original, é Inhebek Hedi), já que o filme não se trata unicamente da “amante” Rym e da relação dos dois, mas sim de toda a personalidade de Hedi, sua forma de se comportar e relacionar com outras pessoas e sua rotina e sua insatisfação naquela situação, revelando na realidade ser um estudo de personagem aprofundado e concentrado em Hedi.
É bastante inteligente a forma como Attia usa os enquadramentos inicialmente para sempre isolar Hedi, mesmo quando está em um ambiente cheio de pessoas, são diversos os planos onde a câmera se encontra não apenas próxima a ele, mas o isolando, já evocando a solidão patente do protagonista. Outras características são notáveis nele com pequenos detalhes que Attia coloca na narrativa, como ao iniciar com ele arrumando sua gravata ou o cuidado ao colocar uma fronha de casa no travesseiro do hotel, embora em alguns poucos momentos o diretor opte para o óbvio, quando ele entreouve uma conversa com sua mãe que o diminui.
Ao construir essa lógica, é muito bonito que muitas sequências envolvendo Rym são planos conjuntos, com os dois presentes na tela, finalmente dando um conforto e carinho humano que o protagonista necessita.
Aliado a isso, obviamente está a atuação de Majd Mastoura, que faz um trabalho extraordinário não apenas na maneira como parece inicialmente pronunciar suas falas com timidez e como se estivessem engasgadas, permitindo até em que vários momentos outras pessoas o interrompem sem ele protestar, como ele tem uma postura sempre encurvada para baixo, sempre parecendo com a cabeça abaixada e manifestando introspecção e melancolia.
Mais uma vez, é muito comovente que em boa parte do filme, Attia parece não enquadrar Hedi de frente, mas sempre de perfil ou de costas, como se o próprio protagonista não nos desse permissão para compreende-lo, mas que muda quando Rym entra em sua vida, adotando uma postura mais reta e sendo visível seu rosto para a tela.
Se Attia é eficaz em construir e analisar de maneira tão intrínseca seu protagonista, as figuras que cria ao redor dele também são dignas de reconhecimento. A começar pelo carisma e calor humano que Rym Ben Messaoud repassa para a personagem com o mesmo nome. Com sorriso e expressão sempre acolhedoras e parecendo mostrar um autêntico fascínio por Hedi, soa natural e lógico quando os dois demonstram uma tensão sexual e finalmente culminam nela de maneira rápida.
Jamais apelando para maniqueísmo baratos para justificar a “traição” que Hedi comete, o filme não demoniza a pretendente dele para defender o ato de Hedi, já que Khedija é uma moça também gentil e doce, mas mais porque vê com mais naturalidade seu casamento arranjado do que Hedi, o que abre para um comentário político indireto do cineasta a respeito desse tipo de cultura no Oriente Médio. Portanto, quando Hedi questiona “o que sabe” dela no carro em determinado momento, é mais uma constatação de que os dois não combinam do que efetivamente uma rivalidade entre eles.
Correndo o perigo de ser representada como a grande antagonista da história, a mãe de Hedi também é vista com cuidado pelo cineasta, já que apesar da personalidade dominadora, ela claramente nutre carinho pelo seu filho e faz aquilo acreditando estar fazendo o melhor, embora não o enxergue como homem, mas como uma criança que precisa de cuidados. E sua reação quando Hedi finalmente desabafa é bastante revelador sobre seu amor a ele.
Descartando também qualquer tipo de trilha, o que realça o caráter mais realista da obra, o roteiro também decide não percorrer para grandes reviravoltas para criar algum tipo de tensão maior, ele se atém a observar com desafetação para a vida de Hedi, o que também é evidenciado pela câmera que o sempre acompanha suas costas e os longos planos, algo característico do cinema dos Dardenne.
Com um final bastante duro e realisticamente triste, A Amante revela que Mohamed Ben Attia é um nome promissor para o cinema ao se revelar um cineasta que retrata uma simples história com um olhar tão tocante e, principalmente, humano.