Se firmando como um cineasta absolutamente autoral, onde dissemina suas marcas registradas em grande parte dos seus filmes, como também é um dos mais frutíferos da atualidade, já que este A Câmera de Claire se trata do seu terceiro filme lançado apenas no ano passado (!). Os outros dois são O Dia Depois e Na Praia à Noite Sozinha e os três obedecem a essa cosmologia que o diretor sul-coreano Hong Sang-soo tece baseado numa banalidade e em acontecimentos ordinários tão próximos do nosso dia a dia.
Compartilhando de vários elementos de Na Praia à Noite Sozinha, agora Sang-soo ancora seus personagens em Cannes, cidade litorânea francesa palco do mais importante festival de cinema de todos. Justamente enquanto ocorre o festival, somos apresentados a Manhee (Min-hee, atriz recorrente na filmografia do diretor), que é sumariamente demitida por sua chefe sem maiores explicações a não ser de “ser desonesta”. Enquanto isso, também vemos os passeios que a professora Claire (Huppert, em outra parceria com o Sang-soo) enquanto tira fotos com sua câmera.
Ocasionalmente as duas se encontram e estabelecem um laço de amizade que as fazem compartilhar suas experiências e vivências, que envolvem também o diretor de cinema So (Jin-young), alguém bastante próximo de Manhee e que também conhece por acaso Claire.
Basta isso para que o diretor desenvolva sua narrativa, já que A Câmera de Claire não se trata de um filme de grandes conflitos ou mesmo uma história de três atos que estabeleçam uma estrutura convencional. Seu cinema consiste muito mais em um retrato muito fidedigno do cotidiano e de certa forma do seu pouco apelo dramático que o Cinema tanto constrói, e que aqui caminha ao contrário.
Em determinado ponto, vemos Manhee com uma colega sentadas em um café, onde a primeira conta sobre sua súbita demissão. Logo após isso, vemos Manhee e sua chefe no exato momento da demissão. O que soaria expositivo e de certa forma desnecessário porque não haveria a necessidade de colocar dois personagens falando sobre a tal demissão se logo em seguida vemos este momento.
Se isso pode ser considerado uma ilógica grave e um amadorismo por parte do cineasta, a intenção de Hong-soo é de justamente remeter a essa persistência da memória que acabamos sempre trazendo para nós quando algo muito impactante nos acontece. E cria até uma certa graça quando o “grande” acontecimento dramático do filme se dá numa conversa mundana e sem grandes histrionismos e ela surge em flashback, o que brinca com a percepção que temos de uma narrativa mais tradicional.
Aliás, chega a ser pleonasmo falar de planos que trazem personagens sentados conversando em uma mesa, seja bebendo café ou álcool, no cinema de Sang-soo, já que seus filmes consistem simplesmente nisso. E o que poderia soar absolutamente aborrecido e autoindulgente, parece se encaixar mais numa simplicidade e honestidade que a narrativa exige desse tipo de temática e personagens que o cineasta constrói do que qualquer outra pretensão ou ignorância de como dirigir.
Por isso, faz bastante sentido que os planos sejam longos e que acompanhem até certos silêncios constrangedores (agora com efeito cômico ótimo quando Claire conhece So no café), pois o que temos de mais próximo de conversas reais entre pessoas comuns é algo assim, sem adição de uma dramaticidade que tente tornar aquilo muito maior do que é. Há também ocasionais zooms que remetem mais a um olhar natural de se ater a um algum detalhe ali do que apontar algum elemento importante ou impulsionar uma sensação de algum personagem.
Com um elenco já bastante familiarizado, novamente o diretor traz Kim Min-hee fazendo uma personagem que mais parece interiorizar seus problemas e dilemas e é passiva as situações incômodas, mas absolutamente triviais da vida. E é curioso como sua personagem aqui divida várias semelhanças com a que faz em Na Praia à Noite Sozinha, já que as duas tem relacionamentos complicados com diretores de cinema (alguns dizem se tratar de uma exposição do próprio Sang-soo), compõem músicas infantis e recorrem a praia para espairecer a mente.
Trabalhando pela segunda vez com a consagrada atriz francesa Isabelle Hupert, aqui ela mais uma vez prova se tratar de alguém sempre com muita presença e carisma, ao dar um toque doce e que parece olhar tudo ao redor com inocência e encantamento, algo que não a faz lembrar em nada de sua personagem em Elle, o que revela o enorme dom de Huppert.
Usando sempre amarelo, que parece contrastar com o ambiente um tanto acinzentado daqui, Claire é a personagem envolvida e mexida com arte, algo também rotineiro do diretor sul-coreano, e que o grande mote daqui parece da sua visão particular que dá a esse acontecimento corriqueiro com pessoas simples, assim é dela que saí uma das divagações mais interessantes, quando explica a razão de tirar fotos.
Se retorna a essa ideia da persistência da imagem e a busca da eternização de nós e nossos feitos, mas que diverge da fluidez constante de nossas personalidades e pensamentos, nunca nos mantendo e correspondendo com fidelidade a imagem construída. Ao mesmo tempo que o diretor So parece ficar inquieto com a questão que Claire traz, é possível reparar que Sang-soo também se mostra intrigado com a questão, já que ao mesmo tempo que parece replicar com a imagem o mundano, o dispositivo como meio já é transformador de significado e retratando uma outra coisa que ali do presente, algo que a personagem diz ser “outra pessoa”.
Também aqui despindo seus personagens masculinos em figuras patéticas e superficiais e tidas como inicialmente de autoridade (como provado numa fala ridícula de So com relação a uma roupa de Manhee), algo tão habitual no mundo, A Câmera de Claire pode até ser apenas uma variação de outros filmes já feitos pelo diretor, mas que ainda assim agrega uma visão bastante particular e que desvenda temas pertinentes na sétima arte em seus curtíssimos 69 minutos de projeção.