Faz parte da receita básica de qualquer cinéfilo assistir a filmes de Alfred Hitchcock. Um dos mais citados é Janela Indiscreta (1954), em que um fotógrafo, depois de sofrer um acidente, fica um tempo na cadeira de rodas e passa seus dias observando a movimentação dos vizinhos pela sua janela. A coisa se complica quando ele acredita ter presenciado um crime. A premissa é basicamente a mesma em A Mulher na Janela (2021). Mas, como se trata de uma obra do século XXI, temos uma mulher como protagonista e no lugar de uma perna quebrada, um transtorno mental.
A protagonista Dra. Anna Fox (Amy Adams), sofre de Agorafobia, um transtorno de ansiedade que causa um medo irracional de sair de casa. Com isso, ela passa seus dias isolada em sua residência e tem como principal passatempo, como no clássico de Hitchcock, observar a movimentação da vizinhança. Sentimento parecido o que sentiu quem teve o privilégio de ver seu trabalho se tornar home office durante a pandemia, tem respeitado as medidas de isolamento e saído de casa somente quando extremamente necessário. A gente sabe exatamente quando o vizinho furador de quarentena chega de madrugada da balada clandestina ou que o dono da oficina de motos de frente de casa tem sérios problemas com uma aparente ex-esposa (isso foi bem específico, né?).
A premissa é interessante, ainda mais, como dito anteriormente, por termos experimentado atualmente essa sensação de estar sempre dentro de casa como a protagonista. Porém, a coisa não se desenvolveu muito bem para além da premissa. Devo dizer que a ideia de ser um “Janela Indiscreta contemporâneo” coloca o filme num nível de exigência um pouco mais elevado e competir com Alfred Hitchcock é complicado, mas não chega a ser exatamente esse o problema. Em uma produção em que uma doença mental, seus tratamentos e o risco de misturar medicamentos com álcool são elementos apresentados como cruciais logo nos primeiros minutos, no restante, entretanto, não são muito bem aproveitados. Ficar meio confuso, para além da confusão esperada de um suspense.
Amy Adams claramente faz o melhor que pode para dar vida a sua personagem, mas parece faltar elementos para que a gente consiga de fato ficar junto dela, entender como é seu dia a dia e experimentar ao menos um pouco como é estar em sua pele. Um filme recente que faz isso de uma forma muito interessante, apesar de não ser um suspense, é O Som do Silêncio (2019). No longa, um baterista começa a perder sua audição de uma forma muito rápida e precisa entrar num novo mundo e aprender a se comunicar sem utilizar sons ou sua voz. Nos primeiros momentos quando ele não sabe nada a respeito da linguagem de sinais, nós espectadores também não sabemos o que está sendo dito. Não temos legendas na tela. As únicas que vemos são as do que está sendo dito pelo protagonista. A partir do momento em que ele fica familiarizado com a nova linguagem, as legendas começam a surgir na tela.
A Mulher na Janela ao invés de construir alguma aproximação conforme citado, já passa rapidamente pelos acontecimentos e ficamos confusos e não de uma forma boa, como é característico em filmes de suspense. As reviravoltas parecem acontecer todas de repente e ao mesmo tempo e o filme aposta mais em quantidade do que em qualidade. Os questionamentos sobre a sobriedade da protagonista ou a honestidade do vizinho violento, são postos em cheque quase que no mesmo momento e fica até difícil acompanhar os rumos da história.
Outra problemática é que, de um certo momento do filme em diante, o gênero muda. Mais precisamente quando começam a ser reveladas as verdades por trás da história. Aí começa correria, armas improvisadas, e etc. Sei que o universo fílmico pode ter suas próprias regras que permitem muitas coisas como mutantes ou alienígenas com um “S” no peito salvando a terra, mas aqui uma coisa me incomodou, pensando que estamos desde o início de 2020 dentro de casa: como Amy Adams conseguiu tanto fôlego para correr e lutar daquele jeito? A mulher ficava só deitada, olhando os vizinhos, assistindo filme e tomando vinho. Descer as escadas para pegar a entrega do aplicativo já me deixa ofegante, imagina correr daquele jeito.
Sendo assim, a produção que só chegou direto à Netflix devido à pandemia que impediu sua estreia nos cinemas, está muitíssimo longe da obra de Hitchcock. Esse é um daqueles filmes que a gente pensa que o livro que serviu de base deve ser bem melhor ou que ele precisava de mãos mais habilidosas para transportá-lo para o cinema. Dá um desespero ver um filme com tanta gente boa como a Amy Adams, Julianne Moore e Gary Oldman num filme mais ou menos como esse.