Julie, uma jovem de quase 30 anos, entre indecisões e conflitos, parece sempre àa deriva de incertezas e expectativas que dão a ela o título de pior pessoa do mundo. O que é hábil do diretor e roteirista Joachim Trier é elucidar com muita clareza e sensibilidade que suas questões são absolutamente naturais da geração millenium (da qual, faço parte) e toda esta cultura e normas sociais que naturalmente nos fazem olhar para si como a pior pessoa de todas.
Dividido em um prólogo, doze capítulos e um epílogo, adotando uma estrutura quase literária, o que faz todo sentido já que Julie parece ter um talento muito grande com a escrita, o filme se resume em acompanhar alguns anos da vida da protagonista vivida com maestria pela Renate Reinsve e suas idas e vindas no amor, trabalho e família.
A grande cartada do filme de Trier se dá justamente pela forma em que se torna factível os dilemas de seus personagens e suas preocupações. Não se trata de acontecimentos grandiloquentes, são questões banais que muitas pessoas passam, como a pressão de um trabalho estável, discussões de relação e incertezas quanto ao futuro.
São brigas onde os parceiros começam chorando e terminam transando e se despendido, revelando a volatilidade dos nossos sentimentos. O cineasta tem muito tato de trazer Julie como uma mulher que claramente sente pressões como, por exemplo, ser mãe. Em um apontamento da narração em off (que volta a salientar o caráter literário do filme), ouvimos a descrição de toda a família de Julie e quantos filhos cada geração teve na idade dela (chegando a mais de 20 filhos e no caso da sua pentavó, nem chegou a viver porque a expectativa de vida da época era de 35 anos).
Dessa forma, vemos um conflito constante do que Julie almeja ser e da mulher que sua família, seus parceiros amorosos e a sociedade esperam. Algo que consegue ser resumido na excelente sequência em que Julie alucina após comer alguns cogumelos e vemos seu corpo envelhecido sendo tocado por diversas mãos de homens, e depois joga um absorvente usado no pai (a simbologia desse momento é brilhante).
Louvável também é como Trier se permite ser onírico para tratar de momentos chaves, como a maravilhosa cena em que Julie congela o tempo. Ao se contemplar pela sua escolha, o mundo ao redor de Julie finalmente para. Se trata de umas das cenas mais poderosas e memoráveis que me recordo do Cinema recente.
Conforme o filme segue, se percebe uma perseguição dos personagens pela vida material, de estarem presentes e bem. “Eu não quero existir por conta da minha arte ou pela memória dos outros. Não quero morrer, quero viver, morar em meu apartamento com você”, diz certo personagem para Julie. Isso sucinta como nós passamos a vida atrás de pessoas, trabalhos, sonhos de uma forma automática, como se o não morrer fosse mais importante do que viver.
Tratando também de questões contemporâneas típicas da internet, como a tal “cultura do cancelamento”, feminismo e sexo, a obra de Trier tem uma consciência social e política bastante pungente por saber trazer esses temas de forma orgânicas, sem soar panfletário ou didático.
Logo após duas horas de projeção, acredito que a conclusão de Julie no final seja justamente essa, ao se permitir estar feliz com as despedidas e do que tivemos. A Pior Pessoa do Mundo foi uma experiência que me fez rememorar os momentos em que tive medo, os que amei pessoas e me despedi delas e enxergar que somos quase sempre as piores pessoas do mundo, por parecermos sempre perdidos nas relações, nas carreiras e na vida. Porém, os momentos em que permitimos ser e viver no mundo, por pior que nós achamos ser, são aqueles que permanecem existindo para sempre.