Uma vez, numa das mil e uma conversas sobre Shakespeare que se espera que ocorram durante os estudos em Artes Cênicas, ouvi que os textos do bardo eram atemporais e seguiriam sendo assim porque ele escreve sobre materiais demasiadamente humanos.
Shakespeare fala sobre amor e ódio, disputa política, honra, luto, tristeza, guerra, vingança, ciúmes, avareza, esperança, sonhos, mesquinharia, amizade, família, respeito, loucura, e aqui eu poderia continuar a escrever e encontrar temas que são tão próximos de nós que é até um pouco assustador.
Mesmo antes de tentar fazer caber na boca o texto do bardo enquanto atriz, pude ter o prazer de assistir a algumas montagens emblemáticas de Shakespeare. Todas elas vibravam na plateia, independentemente do teor do que estava sendo apresentado ou do recorte que o diretor escolhia dar. Se era tragédia de Ricardo III ou o lirismo de Romeu e Julieta, não importava muito: o fato é que havia algo de fantástico em escutar aquelas palavras, e muitas vezes aquela história, pela centésima vez.
Por que, afinal, torcemos por Romeu e Julieta, se já sabemos que os dois vão morrer no final?
Shakespeare tem isso, esse jeito, essa rede de pesca que consegue nos prender até mesmo se já conhecemos as armadilhas: os textos funcionam. E funcionam porque foram testados, mil vezes, antes de entrar em cartaz. Escrever para atores fica muito menos complexo se você, de fato, tem atores para ver se o que você pensou vai dar certo, não é, William?
O que eu mais gosto quando entro em contato com Shakespeare é justamente ver qual é a abordagem escolhida pelo diretor – ou pela equipe, ou pelo dramaturgo, ou pelo segundo autor.
No teatro, costumamos dizer que tem algumas palavras que simplesmente não cabem na boca. Muitas vezes, precisamos repetir determinado texto à exaustão até que ele se faça caber, ou então até que alguma ficha caia e possamos dizer aquilo com um pouco mais de dignidade.
Macbeth é uma tragédia dessas difíceis de se fazer caber. É uma das mais famosas de Shakespeare. E também uma das mais misteriosas, porque sua encenação, ao longo dos séculos envolve uma série de superstições. Nunca tente dizer “Macbeth” dentro de um teatro, a menos que a peça esteja sendo encenada, ou coisas terríveis podem acontecer com você. A superstição chega a ser tão grande que muitos não chegam nem a dizer o nome da peça, mas somente se referem a ela como “A Peça Escocesa” ou “A Peça Maldita”.
Começo falando sobre teatro para tentar entender por que eu gostei tanto dessa montagem de Joel Coen. Pode ter sido pelo elenco formidável, composto por Frances McDormand e Denzel Washington como o casal Macbeth? Pode. Mas também poderia ser pela atuação fenomenal de Kathryn Hunter no papel das bruxas – personagens que já amo de saída, nesta tragédia? Pode. Ou então eu poderia dizer sobre o diretor de fotografia Bruno Delbonnel (O Fabuloso destino de Amélie Poulain, 2011), suas escolhas expressionistas de enquadramentos que, numa parceria acertada com Stefan Denchant consegue deixar o set adereçado na medida certa para que a parafernália não atrapalhe a história.
Como tudo o que é trágico, este texto também carrega uma sucessão de infortúnios que levam ao grande acontecimento final. A história é a de um duque que, levado por uma profecia dita por três bruxas, acaba ensanguentando as paredes de seu castelo, numa jornada repleta de golpes políticos, delírios, loucuras e sede de poder.
Fazia tempo que eu não me batia com um filme que eu tenho certeza de que é uma obra tipo “ame ou odeie”. Porque A Tragédia de Macbeth é uma obra, sabe? Um daqueles espetáculos que a gente não tem como assistir sem reparar que tudo, absolutamente tudo foi pensado para estar daquele jeito. E acredito que seja por isso que eu tenha gostado tanto, que levante a bandeira para defender esta montagem – porque existe um time muito bem orquestrado dentro deste acontecimento.
É possível enxergar o trabalho dos atores, as escolhas do diretor, a composição em cada plano do fotógrafo, o figurino, o set, a trilha sonora muito bem encaixada em momentos-chave que não sobram num gerúndio sem sentido, e sim enaltecem ainda mais o texto.
Com toda beleza que existe nas contradições que se somam, A tragédia de Macbeth é um filme extremamente teatral. E talvez seja por isso, afinal de contas, que eu acredito que ele funcione demais – porque, desta maneira, volta às origens do texto, volta ao que é essencial para se contar uma história. Não existe parafernália, não existe pirofagia – existe um coletivo muito bem afinado que definitivamente sabe o que quer.