Por Sttela Vasco

***Texto pode conter spoilers***

O ser humano tende a olhar para si mesmo e refletir (ou ridicularizar) sobre sua existência, seus relacionamentos e sua maneira de lidar com a vida por meio da arte, que o diga Charlie Kaufman. Roteirista de longas como Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind), de Michel Gondry, e Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich), de Spike Jonze, mergulhar nos sentimentos humanos, analisá-los e expô-los da maneira que estes são – confusos, complexos, incertos – já é de praxe em suas obras. Logo, não seria diferente em uma dirigida por ele próprio.

Anomalisa, na qual ele divide a direção com Duke Johnson, trata basicamente sobre relacionamentos humanos, em especial os amorosos, mas não apenas eles. E como nós tendemos a nos cansar das pessoas e buscar substituí-las em vez de tentarmos mudar e crescer com elas. Assim como em Brilho Eterno, a melhor saída é esquecer (literalmente ou não). Com essa premissa, a animação nos conduz ao cerne dos sentimentos de Michael Stone (David Thewis), um palestrante motivacional que chega a Connecticut para mais uma palestra. Lá, ele entra em contato com um amor do passado que quer rever, porém, não tem sucesso no encontro. Frustrado, ele conhece duas jovens que foram à cidade justamente para vê-lo e uma delas é Lisa (Jennifer Jason Leigh), por quem se apaixona à primeira vista.

Logo de início, Anomalisa já nos traz uma surpresa: todos os personagens, com exceção a Michael e Lisa, têm a mesma voz. O estranhamento que isso causa é temporário e logo se compreende o que causa esse ”fenômeno”. O protagonista é um homem cansado dos seres humanos. Para ele, todos são iguais, com defeitos insuportáveis e cansativos. Homens, mulheres, crianças, antigos amores. Não importa o grau de proximidade ou o que a pessoa tem a dizer, para Michael todos são a mesma coisa. Com a mesma voz, o mesmo rosto e o mesmo comportamento que o incomoda. Ele é egocêntrico, sim, e egoísta, mas é uma caricatura de todos nós. Quem nunca teve a sensação de ser único em meio a uma multidão homogênea? Michael não é um personagem, mas um espelho. Nos incomoda com sua tendência a achar que o mundo gira em torno de si – em um dos momentos mais conflituosos de seu egocentrismo, Michael sonha que todos no hotel em que está o amam e existem única e exclusivamente por ele – e seu pensamento de que os defeitos estão nos outros, mas não em si mesmo. Porém, tal incômodo é vital para obra, pois, Michael não é um personagem, é um reflexo. Ele não incomoda por ser cruel ou agir contra o que consideramos certo, mas por ser real. Esse personagem pode ser qualquer um de nós.

A dualidade apresentada em Michael é curiosa. Ele é um palestrante motivacional que não tem mais ânimo. Está preso à rotina e não encontra nada que motive a ele próprio. É nesse ponto que ele encontra Lisa. Ao ouvir sua voz, a única que soa diferente aos seus ouvidos, Michael fica encantado. Em um mundo de iguais, ele finalmente encontra alguém diferente, que se destaca da multidão de vozes e rostos uniformes. Lisa, além de uma voz diferente, possui cicatrizes e foge do padrão constituído pelos os outros personagens, o que a faz se sentir insegura e, de certa forma, inferior. O encontro dele com Lisa seria muito mais belo e emocionante se não fosse um porém, a maneira como Lisa é apresentada. Uma jovem com baixa autoestima, que se considera fora do peso ideal, burra e pouco atraente que se vê iluminada quando esse homem que ela admira a nota. Seria a história de um ser humano ajudando ao outro em meio a um universo de pessoas vazias e iguais. Seria, se Lisa não fosse a única a se resgatar na história.

Michael se encanta por ela ser diferente, a exalta por isso, demonstra sua paixão. Mas ele não se sente mais seguro graças a Lisa, ele não precisa disso. Ele se sente menos solitário, sim, e encontra uma razão para voltar a se sentir motivado, mas sua autoestima não muda porque Lisa também reparou nele, porque ela também o aceitou e o viu como especial. Nesse relacionamento súbito, ambos mudam, mas apenas ela é afetada por finalmente ser notada por alguém. É justamente na relação entre ambos que residem os pecados de Anomalisa. Em meio a tanto para explorar, a tantas trocas possíveis, o filme bate no mesmo clichê de uma garota que se sente inferior e passa a sentir que tem algum valor porque um homem – por sinal, famoso e aclamado – repara nela.

Nenhuma pessoa, porém, se mantém nova e sem defeitos por muito tempo. Michael logo começa a reparar alguns em Lisa e, aos poucos, seu encanto vai se rompendo, o levando novamente a questionar sua vida e suas emoções. Kaufman conduz sua obra dessa maneira. Não importam os encontros que Michael tenha, seus questionamentos eventualmente voltarão a assombrá-lo. Ele tem dificuldades em se abrir, em admitir que também possui defeitos e aceitar que nenhum ser humano que ele encontrar irá se encaixar em suas expectativas. Solitário e sempre ausente, usando o trabalho como maneira de escapar da vida em si, Anomalisa lembra em alguns momentos Amor Sem Escalas (Up In the Air), de Jason Reitman, com um pouco menos de humor e um pouco mais de melancolia. A estética, inclusive, é bem similar e próprio Michael se assemelha muito ao George Clooney.

Com questionamentos interessantes, a animação se perde um pouco conforme vai mergulhando em suas análises e, ao final, parece se dar por vencida pelas mesmas. Encerrando-se como se tivesse terminado na metade, Anomalisa parece não querer se resolver. Deixa algumas questões para o espectador e dá a entender que, no fim, impactamos a vida dos outros sem necessariamente impactarmos a nós mesmos de maneira duradoura. Em termos técnicos, a animação é excepcional. Feita em stop motion, ela é extremamente realista e surpreende pela riqueza dos detalhes. Seus personagens são extremamente humanos não apenas nos questionamentos, mas na aparência também, o que ajuda nesse processo de identificação com os mesmos. Triste, porém, que com a avidez de criticar e estudar tantos sentimentos, o filme perde por se prender aos próprios clichês e, assim como seu protagonista, após uma longa jornada, não chega a lugar algum.

Anomalisa

Anomalisa

Ano: 2015

Direção: Charlie Kaufman, Duke Jonhson

Roteiro: Charlie Kaufman

Elenco Principal: David Thewlis, Jennifer Jason Leigh, Tom Noonam

Gênero: Animação, Drama

Nacionalidade: EUA.

 

 

Veja o trailer: