Por Frederico Cabala

Aquarius vem colecionando polêmicas desde Cannes, quando a equipe do longa empunhou cartazes em defesa da democracia no Brasil. Nos últimos dias, novos episódios engrossaram o caldo das querelas. Após a questionável classificação indicativa de 18 anos determinada pelo Ministério da Justiça, alguns cineastas como Anna Muylaert e Gabriel Mascaro desistiram da candidatura de seus filmes para representar o Brasil no Oscar de 2017, em apoio a Aquarius. As controvérsias e tensões que marcam o lançamento do novo trabalho de Kleber Mendonça Filho somente o fortalecem como o filme nacional do ano e, de certa maneira, refletem também elementos internos da própria trama: estamos diante de um filme de alta voltagem política, em sua expressão mais ampla.

O filme nos guia inicialmente pra uma cidade litorânea onde os fuscas são maioria no trânsito e uma longa orla apresenta ruas tranquilas, casas bonitas e alguns prédios baixos. Estamos no Recife dos anos 1980. Uma jovem de cabelos curtos, Clara (Barbara Colen), participa do septuagésimo aniversário de sua tia Lúcia (Thaia Perez) em um apartamento à beira mar. Neste ambiente de celebração, os cortes se alternam entre a cena presente de homenagens à aniversariante e curtos flashbacks das próprias memórias de Lúcia, que se confundem com o apartamento. Mais do que os feitos enaltecidos pelas pessoas, são os objetos do lugar que despertam lembranças íntimas da personagem. Aqueles móveis, de certa maneira, conhecem Lúcia mais do que qualquer parente. Embalada pelas memórias, a personagem se levanta para agradecer as homenagens e inclui entre seus feitos a revolução sexual, para riso dos presentes. O tom de encontro familiar ganha novos contornos de emoção quando é revelada a luta e a vitória de Clara contra um câncer de mama.

Há, então, um salto temporal no filme, mas o espaço permanece o mesmo, ainda que mudado. Nos dias atuais, Clara (Sonia Braga), com cabelo volumoso, é uma escritora e jornalista aposentada que mora sozinha no mesmo apartamento que fora de Lúcia. O prédio, de nome Aquarius, ainda é a mesma construção de dois andares de décadas passadas, mas todo o entorno está diferente, com o trânsito pesado e os imensos edifícios que verticalizaram a orla da capital pernambucana. Atualmente viúva e mãe de três filhos já adultos, Clara enfrenta a gana da empreiteira que tem o sugestivo nome de “Construtora Bonfim”. Representada por Diego Bonfim (Humberto Carrão), neto do dono da empresa, a construtora persegue Clara com ofertas para compra do último apartamento que falta para a demolição do prédio e construção de um novo condomínio com ares modernos. A cidade e o argumento se reforçam, visto que Recife protagoniza discussões acerca do direito à cidade e da paisagem urbana, como no caso da disputa pelo uso do cais Estelita.

Entretanto, Clara é impassível em relação às ofertas milionárias. Contrariando até mesmo os próprios filhos, a personagem é uma fortaleza e resiste aos jogos cada vez mais baixos de Diego Bonfim, que apela para todos os tipos de importunações à Clara na tentativa fazê-la aceitar a venda. A disputa desigual faz com que Clara empenhe todas as suas forças em busca de garantir a permanência na própria casa, pois hoje ela prefere “causar um câncer a ter outro”. Para isso, conta com o auxílio de amigos, como o salva-vidas Roberval (Irandhir Santos).

A grandeza da personagem é concedida através da atuação determinante de Sonia Braga, que possui domínio de cena em tela tal qual Maria Bethânia nos palcos, cantora adorada por Clara, cujas músicas são tantas vezes evocadas em Aquarius. A partir do acirramento do conflito pelo apartamento, o ritmo do longa, então, se tensiona em uma aflição cada vez mais sufocante.

E o filme dá certo principalmente por equilibrar harmonicamente seu enredo e sua estética, sua política e sua poética. A atmosfera de tensão da trama é favorecida também a partir de planos-sequência impressionantes, cortes rápidos e zooms inusitados que marcam a imprevisibilidade do filme para o espectador em uma sequência de sustos e alívios. Um pequeno acontecimento, como a retirada de um carro da garagem, por exemplo, ganha tônica de aflição.

Chama atenção a centralidade do poder feminino no longa. Clara é dona de si. Perdeu uma mama para a doença que teve e vive sozinha, mas é completa e autossuficiente. Ouve músicas e dança pelo apartamento, fuma maconha quando quer e, caso sinta vontade, contrata garoto de programa. As cenas eróticas são tratadas pelo viés dos desejos de personagens femininas. O sexo oral, por exemplo, é apresentado em Aquarius pelo gozo da mulher, na contramão do que geralmente se vê em um terreno tradicionalmente machista como o cinema. Pode ser que esse motivo tenha contribuído para o rigor da classificação indicativa do filme. Nesse momento do país, onde forças resistem em enfrentar tabus sexuais, o novo trabalho de Kleber Mendonça Filho talvez sinalize para a necessidade de uma nova era de aquarius, com sua visão libertadora da sexualidade.

Sendo assim, essencialmente recheado de política e afeto, Aquarius é, acima de tudo, um filme brasileiro. Onde o poder local de famílias tradicionais mistura-se à ferocidade da especulação imobiliária, onde as relações são ainda construídas a partir da posição social — veja como é ambígua a relação de poder e carinho entre Clara e sua empregada Ladjane (Zoraide Coleto) — e onde o sexo é tabu, sobretudo quando encarado do ponto de vista feminino. Diante disso, toda polêmica faz sentido. E o tumulto não é em vão. O tremor criado em torno de Aquarius é do tamanho da magnitude desse filme. Sim, parece que estamos chegando a um novo ponto alto do cinema nacional.

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Ano: 2016

Direção: Kleber Mendonça Filho

Elenco: Sonia Braga, Humberto Carrão, Irandhir Santos, Maeve Jinkings, Zoraide Coleto

Gênero: Drama

Nacionalidade: Brasil

Assista ao trailer:

 

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