Numa preferência pessoal, sempre fui mais fascinado pelos mistérios desvendados pelo detetive Hercule Poirot, personagem criado por Agatha Christie, do que no detetive mais famoso de todos, Sherlock Holmes. Se nos livros com Sherlock, como O Cão dos Baskerville, acabávamos ficando sem a presença do protagonista em boa parte do livro para depois ele surgir já com soluções, os casos de Poirot permitiam que, não só ficássemos junto a ele, como os elementos com a resposta do crime já estavam presentes na trama, assim sendo resultado da inteligência de Poirot e não soando quase como um superpoder, como soa com Holmes.
A criação de Arthur Conan Doyle sempre teve um apelo popular muito maior do que o de Christie, fornecendo um material extenso para as mais diversas adaptações para cinema e televisão. Portanto, é ótimo quando alguém investe em explorar o universo de Agatha Christie. O diretor e ator Kenneth Branagh dá vida a uma das obras mais icônicas da escritora e mais marcantes da literatura policial, Assassinato no Expresso do Oriente (e, pessoalmente, meu favorito da autora).
Já tendo uma adaptação para os cinemas feita em 1974 pelo mestre Sidney Lumet, a história se concentra no detetive belga Hercule Poirot (Branagh), que após resolver um caso em Jerusalém e obstinado a tirar férias, se vê obrigado a ir até a França para uma nova ocorrência. Com a ajuda de seu amigo Bouc (Bateman), diretor do Expresso do Oriente, ele aloca Poirot em um trem estranhamente lotado e cheio de figuras diversas e curiosas. Em uma noite, ao mesmo tempo que o expresso é atingido por uma avalanche e descarrilhado, um assassinato ocorre e impelindo Poirot a descobrir o responsável do crime dentre todos os passageiros.
Escrito por Michael Green (que tem tido um ótimo ano sendo um dos responsáveis pelo roteiro de Logan e Blade Runner 2049), a premissa já se inicia de maneira hábil ao nos revelar todas as particularidades e hábitos do detetive protagonista: excêntrico, meticuloso, absolutamente experiente e inteligente. E isso já fica claro de forma divertida, como sua exigência dos ovos cozidos sempre do mesmo tamanho ou de ao pisar em fezes de cavalo, pisar com o outro pé para manter uma simetria, como também racional ao dar seu parecer preciso do caso ali e predizendo a ação que culminaria ao fincar sua bengala na parede.
Um erro que o filme evita cometer é tornar aa natureza metódica e detalhista do protagonista apenas um alívio cômico da trama, fazendo com que essa característica não apenas seja autêntica dele, como relevante para seu arco dramático na trama. Poirot divide com um personagem que seu talento se deve ao fardo de ver as coisas de “maneira certa” e que as imperfeições do mundo ficam evidentes a ele, enxergando o mundo de forma binária, onde só há apenas “o certo e o errado”.
Um jeito simplório de pensar, aparentemente, mas que permite a Poirot ver com extrema facilidade as deformidades da vida real e do caráter humano, assim o tornando no grande detetive que é. E por decidir explorar esse atributo do personagem, a história ideal para fazer com que reavalie esse modo de distinguir a vida se trata justamente de Assassinato no Expresso do Oriente, cujo desfecho (sem spoilers) não é catalogado com prontidão o que é certo e errado.
Uma questão bem interessante e complexa, mas que pela densidade da história e pela abundância de personagens aqui, se resolve com os personagens verbalizando seus dilemas e sentimentos, sacrificando o enriquecimento do roteiro para um entendimento pleno de tudo e todos no filme.
Abandonando elementos multifacetados por rápidas compreensões e certificando que o espectador entenderá tudo, o roteiro parece tratar todos os outros personagens/suspeitos de forma superficial, mas usa disso como algo orgânico à proposta da narrativa, já que é justamente aqueles indivíduos não serem o que parecem ser que cria a subversão na história. Logo de início parece que vemos uma série de figuras facilmente categorizadas, introduzidas numa montagem apressada que não configura com exatidão a relação tempo e espaço entre eles, mas que ao decorrer do filme, se revelam mais profundas do que parecem.
Isso se dá também ao elenco invejável e afiado que o filme traz: Penélope Cruz, Willem Dafoe, Judi Dench, Michelle Pfeiffer… Embora cada um tenha pouco tempo de tela, todos são talentosos o suficiente para dar forma e personalidade a seus personagens. Até mesmo Johnny Depp, que para mim tem se tornado em um ator cada vez mais preguiçoso e acomodado, faz um trabalho decente (mas caricatural, tanto na atuação quanto na maquiagem da cicatriz) com seu Ratchett. E é bacana ver Daisy Ridley em algo que não é relacionado a Star Wars, aqui tornando sua Miss Mary Debenham uma personagem que emana gentileza e solidariedade.
Mas talvez um dos trabalhos mais fundamentais para o êxito da obra se dá na caracterização de Kenneth Branagh. Oscilando muito bem entre uma figura mais austera e reclusa para um sujeito cordial e quase acriançado (sua forma de rir ao ler Charles Dickens). Seu Hercule Poirot é um personagem que mesmo tendo autoridade e exprimindo sabedoria para desvendar o caso, ainda é alguém que tem suas vulnerabilidades, mesmo de forma artificial ao dar uma dimensão emocional ao protagonista trazendo o clichê de olhar uma foto de uma amada perdida e dizer “minha Katherine”.
Não apenas interpretando muito bem, Branagh tem belos acertos na direção que assume também. Embora invista em longos planos que soam mais como firulas estilísticas do que algo orgânico a narrativa, algumas se mostram interessantes, como o longo travelling que traz Poirot e Caroline Hubbard (Pfeiffer) conversando e caminhando por dentro do expresso inteiro, com a câmera do lado de fora, dando assim a proporção do espaço onde toda a história se passará.
Adotando até mesmo a lógica que construiu em Frankenstein de Mary Shelly, ao usar o plongé para retratar a morte, não apenas em toda a sequência da descoberta do assassinato, mas como ao revisitar a cena do crime, agora com o corpo exposto e sendo competente em colocar no quadro, antes dos personagens repararem, as pistas deixadas pelo assassino e posteriormente notadas por eles.
Embora tenha decisões muito elegantes como essas, alguns momentos soam como exibicionismo de Branagh, como em um travelling que vai subindo, acompanhando uma conversa entre Poirot e Debenham, e outros apenas não funcionam, por exemplos, as sequências de ação, não são bem concebidas e não soam naturais, estando ali apenas para dar algum tipo de agilidade a trama e torná-la menos cerebral. Sendo que Poirot é um detetive pautado muito mais por seu intelecto e pacatez do que pelas habilidades físicas (como o Sherlock em algumas adaptações).
No quesito técnico, embora soe artificial por conta do uso em excesso do CGI, faz um trabalho competente de recriação de época, tornando o expresso em um lugar que, fino de início, se torna em um ambiente de confinamento pelo seu espaço limitante. Também é certeiro na composição do figurino e cenário, os quais fornecem as principais características dos personagens, como as roupas sofisticadas da princesa Dragomiroff (Dench), o terno mais polido do professor Gerhard Hardman (Dafoe), as roupas mais escuras de Ratchett ou os veludos pesados que decoram o quarto dos condes Rudolph (Polunin) e Elena Andrenyi (Boynton).
Com um plano final que traz um veículo se partindo na direção do pôr-do-sol, talvez simbolizando a possível paz de espírito que algumas figuras trágicas e corrompidas possam encontrar, Assassinato no Expresso do Oriente é uma bem-sucedida adaptação de um clássico de uma das autores mais imprescindíveis do gênero. Um estímulo e entusiasmo para conferir futuros filmes protagonizados pelo meu detetive na ficção favorito e para saber quais serão os próximos mistérios a ser solucionados pelo grande Hercule Poirot.