É numa animação com moldes dos Looney Tunes que a protagonista Harley Quinn/ Arlequina (Robbie) nos introduz sua história de emancipação (como consta no título do filme) após o término de seu namoro com o Coringa. Debochada, ácida e inconsequente, o início que contrasta a graça do desenho animado com a história cheia de abusos e violência resume bem o que se encontrará nesse Aves de Rapina, novo projeto do universo de filmes da DC.
O primeiro filme solo de Quinn, que foi introduzida no sofrível Esquadrão Suicida (2016), se trata de uma desconstrução completa da personagem. Abandonando as roupas curtas e apertadas, valorizadas por David Ayer, a diretora Cathy Yan veste a personagem com macacões e blusa de franjas colorida que traduzem muito melhor a jocosidade e irreverência de Arlequina.
Não ambicionando mais em ser uma dona de casa pronta para atender as vontades de Coringa, Harley Quinn agora possui suas próprias motivações de ser bem-sucedida e realizada (seja ganhando dinheiro ou comendo seu sanduíche favorito). Porém, isso não significa que sua moralidade tenha mudado, já que se trata de um anti-heroína cujos comportamentos oscilam para o bem e para o mal, dependendo do lhe for mais conveniente no momento.
Escrito por Christina Hodson (Bumblebee, 2018), o roteiro de Aves de Rapina é uma bagunça. Cheio de personagens, vai e volta da história, diálogos e cenas expositivas. Porém, se por um lado tudo isso compromete a qualidade do filme, por outro é um fator autoindulgente, já que a própria estrutura narrativa anárquica reflete a personalidade da protagonista. Ela chega, por breves momentos, a olhar para o espectador e pedir desculpas por ter pulado alguma parte importante da trama.
Assim, o que poderia ser uma completa desordem, até se beneficia um tanto por aprofundar na personagem, algo que Esquadrão Suicida carecia tanto. Enquanto Margot Robbie não conseguia estabelecer com cuidado a personagem, tornando Harley uma figura irritante que necessitava apontar para todos sua loucura e seu amor pelo Coringa no filme de 2016, em Aves de Rapina ela ganha contornos bem mais complexos e espaço para conceber suas idiossincrasias, como a forma de partir do desespero para a alegria insossa em um piscar de olhos.
Algo que também impressiona aqui é a direção segura de Yan. Não sobrecarregando o espectador com cortes incessantes para dar ritmo a ação, a diretora aposta em planos um pouco mais longos, que valorizam as sequências de lutas e mostram toda a coreografia dos personagens, deixando claro a geografia e a posição de cada um. Num período onde tantos filmes do subgênero de super-heróis não parecem ter ideia de como criar boas cenas de ação, Cathy Yan se mostra muito eficiente aqui.
Completando o time das Aves de Rapina, pouco sabemos além de características unidimensionais de cada uma: Caçadora (Winstead) é uma figura sinistra que busca vingança (e que é zombada por Harley pelo seu nome); Renee Montoya (Perez) é uma policial alcoólatra (que Arlequina debocha falando ter saído de um filme policial clichê dos anos 80); Canário Negro, vivida com certa melancolia por Jurnee Smollett-Bell, ganha algum desenvolvimento. Já Ewan McGregor parece estar se divertindo num vilão genérico que corresponde ao velho clichê do “Silly Villain”, visto em tantas outras mídias.
No final das contas, Aves de Rapina é um reflexo claro dos tempos atuais: seja por desconstruir uma personagem vista sempre como submissa ou ao apostar numa linguagem moderna, como letreiros com emojis de berinjela para fazer piadas envolvendo certo órgão reprodutor.
Mesmo não sendo uma abordagem totalmente inédita (o tom e a metalinguagem lembram bem Deadpool) e o roteiro não ser dos mais bem construídos, o filme solo de Harley Quinn consegue restaurar certa vivacidade a um gênero abarrotado das mesmas temáticas e protagonistas (masculinos). Além de ser revigorante uma personagem que foi tão mal desenvolvida na sua primeira aparição aqui ter sua merecida emancipação.