It’s a man’s world.

Alguns filmes deixam mais do que impressões. Mexem com você ao ponto de você não saber ao certo o que sentiu, o que foi aquilo que você acabou assistir. Bem, Bela Vingança (Promising Young Woman, no original) é um desses. A obra, que é o primeiro longa da diretora e roteirista Emerald Fennel, acompanha a história de Cassandra (Carey Mulligan), uma jovem mulher que trabalha em um café e parece ter poucas ambições para sua vida. Porém, é durante a noite que ela revela seu verdadeiro objetivo de vida.Traumatizada por tristes eventos de seu passado, Cassie busca vingança contra os responsáveis por sua dor. O longa estreou mundialmente no Festival de Sundance.

Há algum tempo, falei sobre o incômodo que é ter homens dirigindo obras sobre o que é ser mulher na sociedade. Algumas pessoas consideraram que eu estava limitando a arte ou a criatividade. “Mas agora só mulher pode dirigir filme sobre mulher?”. Não. Porém, como disse certa vez Denzel Washington ao ser questionado sobre o porquê de Um Limite Entre Nós ter que ser dirigido por uma pessoa negra e não uma pessoa branca, se trata sobre cultura. Sobre colocar na tela algo que o outro, com seu olhar de outro e sua ausência de experiência em primeira pessoa, não conseguiria. Da mesma maneira, um homem (em especial um homem cis e heterossexual) jamais conseguiria expressar o que é verdadeiramente ser mulher em uma sociedade machista e misógina. Muito menos falar sobre algo que conhecemos bem: a cultura do estupro.

Confesso que esse longa me despertou a atenção logo que vi o trailer. No começo acreditei que seria outra obra que foca em revitimizar vítimas mais do que mostrar a brutalidade da sociedade patriarcal em que vivemos. Mas não, fui logo surpreendida. Era muito mais sobre isso. Nos tirava do papel de vítimas e nos colocava nesse lugar sombrio, excitante e ainda pouco visto nas obras audiovisuais: o de protagonistas. Cassie é quase uma anti-heroína. Ela faz o que muitas de nós desejamos no nosso íntimo, mas não podemos. É um desabafo e o acerto de contas que não teremos na vida real. É uma forma de reivindicar o poder de uma mulher sem deixar de lado suas feridas e vulnerabilidades.

O filme poderia muito bem se render ao melancólico, se transformar em uma narrativa focada na tristeza e na angústia da personagem, mas não. É a raiva e o desejo tanto de vingança quanto de mudança de Cassie que nos conduz ao longo da história. Ela não pode mudar o mundo, claro, e os problemas da sociedade – o dia a dia que as mulheres vivem – estão presentes em todo momento: nos homens que a assediam na rua, no “machão” que vem tentar intimidá-la em seu carro, nos “bons moços” das baladas. Não é nada irreal, nada que não aconteça diariamente com mulheres em diversos lugares. Aliás, é do retrato de uma realidade crua que o longa tira sua força. E, claro, do humor.

O humor, tanto da protagonista quanto do filme em si, é maravilhoso. Atenua momentos tensos e traz certa leveza aos mais dramáticos. É um humor ácido, sádico. E que te faz enxergar os diferentes tons da vingança de Cassie. É interessante como ela a orquestra e executa. Você imaginaria (essa me parece ter sido até mesmo a proposta do trailer) um banho de sangue, algo quase psicótico, mas não. Conforme o tempo passa, percebemos que a vingança pode ser sombria sem necessariamente ser sanguinária. Não espere que esse seja um Doce Vingança da vida, não há nada de muito sangrento ou até mesmo explícito por aqui.

Também é interessante como o filme aborda a “loucura” de Cassie. Afinal, esse é um dos primeiros rótulos a serem colocados nas mulheres. Cassie não é louca, mas sim uma mulher ferida e, acima de tudo, com o sabor da injustiça e da impunidade em na boca. Já que os meios legais se mostraram inúteis, ela encontrou sua própria maneira de fazer os culpados pagarem. Algo que Fennell faz muito bem é desconstruir a ideia de que estupradores são monstros. Homem após homem, vemos o quanto eles são comuns. Homens casados, estudantes exemplares, grandes nomes da medicina e até um namorado carinhoso. Como eu disse, isso é algo que male gaze nenhum consegue compreender ou capturar. Não somente a realidade de quem são esses homens, mas também a realidade do que vem após uma acusação de estupro é muito verdadeira.

Temos o clássico “ele era só um menino”, o “você sabe o que uma denúncia assim pode fazer com a carreira dele?” e, claro, a culpabilização da vítima. Bela Vingança explora todas os ângulos dessa violência, indo além do estuprador. Temos os amigos que acobertam, a figura de autoridade que faz vista grossa, o advogado (e aqui o caso de Mari Ferrer voltou à minha mente ao pensar em como as vítimas são tratadas nos tribunais. As artimanhas usadas para desmoralizá-la e como a vida sexual de uma mulher é usada como prova contra ela), a amiga que desconsidera e trata o ocorrido como nada demais. Fennell passa por todos os personagens possíveis existentes em casos assim e não desculpa o machismo com que muitas mulheres respondem quando ficam sabendo de um caso de estupro.

Apesar das lentes distorcidas com que conta essa história, a diretora em nenhum momento exagera ou inventa os caminhos que levaram Cassie à sua jornada. Tudo ali é muito fácil de ser encontrado na vida real. Tudo sempre seguido por uma trilha sonora primorosa. Acredito, inclusive, que a trilha é um dos grandes trunfos. Com versões de clássicos como It’s Raining Men, do The Weather Girls, e inserções certeiras de hits do pop como Toxic, de Britney Spears, a trilha casa perfeitamente com o tom doce/macabro do filme. Adorei como a música foi inserida como forma de quebrar determinadas tensões e climas, fugindo de determinados clichês. A fotografia acompanha tais contrastes nos permitindo acessar as diversas faces da protagonista. No entanto, é a paleta de cores, que mescla candy colors com tons pastéis, que amarra de fato todos os elementos. A escolha dos tons usados reflete exatamente os sentimentos e impressões transmitidos pela trilha, passando mensagens mistas ao espectador e quebrando certas expectativas.

A escolha de determinados nomes para o elenco também é bastante interessante. Talvez tenha sido intencional, talvez não, mas ver Adam Brody como um dos “predadores” é perfeito, afinal, quem poderia incorporar com mais precisão o “bom moço” do que o eterno Seth Cohen de The O.C? Também apreciei muito ver Jennifer Coolidge (muito conhecida como a “mãe do Stifler” de American Pie) em um papel que foge ao estereótipo de “gostosona burra” e adorei também ver Laverne Cox, apesar do seu pouco tempo de tela. E, claro, Carey Mulligan está ótima. Ela transmite muito bem a multiplicidade de Cassandra, variando entre o eu mais sombrio e quase psicopata da personagem para o mais sombrio e ferido da mesma.

É interessante acompanhar a redenção de alguns personagens e as voltas que suas vidas dão, algo que, suspeito, o filme faça para não parecer que todos são vilões. Essa, aliás, é uma das críticas que imagino que muitos homens farão ao longa. A forma com que ele faz parecer que todos os homens são abusadores. “Mas nem todo homem”, não é mesmo? Nem todo homem, mas toda mulher já passou por situações as quais o filme nos faz lembrar. E é doloroso ver. É triste que essa não seja apenas uma obra de ficção em um universo exagerado. É, nem todo homem é vilão, mas não há como saber quais são. Fica o convite à reflexão de quantas vezes você foi o amigo que incentivou, o que acobertou, o que duvidou da vítima ou o que fingiu que não viu. Nem todo homem é vilão, mas e cúmplice, será que não?

Bela Vingança te deixa com diversas sensações. É um filme que te dá golpes quando você não espera e faz com que você fique em um misto de satisfação, frustração, exaltação e tristeza. A mensagem que o longa deixa, no entanto, é dura de engolir. Por mais que busquemos vingança e consigamos fazer nossas vozes serem ouvidas para alcançar alguma justiça, por mais que tentemos mudar, esse ainda é um mundo dos homens. E mulheres que tentam se levantar contra ele devem estar preparadas para pagar o preço.

Bela Vingança

Bela Vingança (Promising Young Woman)

Ano: 2020
Direção: Emerald Fennel
Roteiro: Emerald Fennel
Elenco principal:
Carey Mulligan, Laverne Cox, Bo Burnham
Gênero: ​
Thriller, Comédia
Nacionalidade:
EUA

Avaliação Geral: 4