Por Carine Souza e Jorge Ialanji Filholini

No primeiro plano de Casa de Antiguidades (2020), somos apresentados a uma atmosfera em que não conseguimos distinguir qual o tempo e espaço daquela cena. Uma iluminação clara. Um enquadramento com a cor branca pesada. Uma pessoa toda coberta com uma roupa que lembra a de um astronauta. Equipamentos e máquinas cromadas. Maniqueísmo de uma ficção-científica. Aparentemente um ambiente distópico, longe de nossas interpretações concretas, com um pé no insólito, não permitindo distinguir, logo de início, em que lugar estamos. A qual futuro ou passado aquele indivíduo coberto por aquele uniforme pertence? E é aí que o filme começa a nos tirar da zona de conforto.

O real e o imaginário colidem. Como resultado, cacos de vidros espalhados pelo chão. Como remontá-los é a sacada para a construção do alicerce de Casa de Antiguidades. A sensação de que seremos transportados a um espelho fragmentado de impressões. Esse espelho fragmentado é o Brasil refletindo as mazelas mais profundas. Estão ali, na nossa frente. Mas não é de imediato que esse Brasil fracionado é reconstruído. E nem todo caco é colocado de volta, deixando para o espectador encaixar alguns.

Casa de Antiguidades é soturno, no nosso desespero o longa dá o bote. O panorama de um Brasil que nunca deixou de ser racista, xenófobo, machista, violento, patriarcal, abusador e opressor. Um recorte, em 93 minutos, da conduta social brasileira já gasta do século XX, e, que, infelizmente, ainda perdura neste em que estamos. Um país em que não sabemos a sua real cronologia. Não vemos celulares e computadores, enxergamos equipamentos obsoletos em cena, figurinos retrôs em harmonia com a moda recente, discursos de cunhos extremistas – que denotam os comícios nazifascistas do período entreguerras –, a arma de fogo contra a lança, contra a ancestralidade, um clima frio e desalmado, em um uso particular do gênero suspense, que cresce no decorrer dos minutos do filme, muitas vezes flertando com o terror, fazendo com que o espectador  se torne refém daquele ambiente incompreendido. Alucinação. Insanidade. Devaneios. Real.

O longa integrou a seleção oficial do Festival de Cannes – que foi cancelado devido a pandemia de Covid-19 –, foi exibido nos festivais de San Sebastián e de Toronto. Tendo como ponta-de-lança o roteirista e diretor João Paulo Miranda Maria. Em seu primeiro longa-metragem, ele mostra bom desenvolvimento em contar uma história, além de primoroso controle narrativo na direção. Sem pressa, Miranda Maria passa para o espectador os perigos dos comportamentos e atitudes que emprenham a população da pequena cidade do interior de Santa Catarina, antiga colônia austríaca, onde se passa o filme.

Mas quem nos conduz magistralmente na trama é Cristovam, interpretado de forma visceral por Antonio Pitanga, tão complexo que já entra para a galeria de grandes personagens da cinematografia brasileira. Cristovam é oprimido, direta e indiretamente, pelos moradores do local, vive em uma casa abandonada no meio do mato.

Solitário, calado, contido, com idade avançada, um estrangeiro em seu próprio país. Apesar de estar numa colônia austríaca, ele é um homem negro no Brasil, deslocado, inivisibilizado, hesitante, com seu berrante, sem saber muito o que fazer com a sua voz. Um boiadeiro que, quando percebe que a fantasia de gado não é agradável, acha que pode bancar o faroeste, reproduzindo o comportamento do homem branco com seus maus costumes ocidentais. Mas, a tempo, ele parece perceber que essa capa não lhe protege de nada.

No filme, não por acaso, há poucas pessoas negras. Além do protagonista, há também duas personagens negras, Jenifer e, sua mãe, Jandira, interpretadas brilhantemente por duas grandes atrizes brasileiras, Ana Flavia Cavalcanti e Aline Marta Maia. Como mulheres negras da vida real, elas estão anos-luz à frente de Cristovam. É por meio delas que ele desperta. São elas que fazem o chamamento. Sobretudo, Jenifer, a mais jovem, uma onça livre, cuja existência por si só já é um afronte. Elas estão na história – a olho nu – poucas e marcantes, conscientes de suas forças e fraquezas, devidamente armadas, não se curvam, não deitam, a cena é delas.

Diante disso, Cristovam atende o chamado de sua memória ancestral. É hora! Um homem cansado, no fim da vida, não tem mais nada a perder. Ele responde. Morre o homem submisso. Boiadeiro acordou. É chegada a hora do levante, do revide.  Cristovam toca o berrante, pede a conta e não deixa barato. Gira o tempo, gira o dia, gira o laço pelo ar, atacando usando o peito, louvando pai Oxalá. Quando tudo parece estar perdido e um menino negro se recusa a atirar em um preto velho é a certeza que, na mata, folha verde vai nascer. É hora! Esse pode ser o ponto onde o filme quer nos levar: estamos atrasados, mas ainda dá tempo. É hora!

Na casa abandonada, diversos signos de aborte culturais nacionais são manifestados para Cristovam. Criando vida, ou melhor, transmitindo um protesto contra toda coerção extremista e anticultural daquela cidade que almeja abafar e exterminar, Cristovam pode ser assim interpretado como um guardião das nossas raízes culturais. Uma caixa de lembranças de nossas origens. O defensor de nossa memória. O detentor de nossa história. Metamorfoseando entre os objetos e a personagem. Há que se destacar a transformação Cristovam/Pitanga, pois o ator também é um guardador vivo das recordações do cinema nacional da segunda metade do século passado. Antonio Pitanga transmite a identidade brasileira. Cristovam, a persona que enfrentará as tantas tentativas de dominação, injustiça, depredação, sujeição, apagamento e perseguição pelos moradores do lugar. Uma alegoria da extrema direita vigente no Brasil.

Dentre tantas interpretações em Casa de Antiguidades, vale destacar o que vem ocorrendo com a Cinemateca e a tentativa do governo federal de liquidar a memória cultural dos filmes nacionais. Um comando sem laços afetivos com sua própria história. Uma metáfora da casa abandonada do filme com o museu audiovisual que está se desgastando com a falta de investimento de recursos para a manutenção e pagamento de funcionários. Funcionários esses que são a fragmentação de Cristovam e tornaram-se guardiões de um pedaço da memória de nossa história.

Em outras palavras, Miranda Maria espalha por essa casa abandonada os caquinhos do espelho das multifacetadas feições refletidas de um eminente retrato de um país em batalha pelo não apagamento de sua identidade, memória e futuras ideias socioculturais que necessitam, como base de seu empenho, vasculhar nos cômodos da História de uma casa de antiguidades para acessar, um campo mais brando e vasto para as novas gerações, o chamado do berrante para o revide.

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Carine Souza: Mulher negra, soteropolitana. Produtora cultural e idealizadora do Mulheres Negras na Biblioteca, um projeto de incentivo à leitura de obras de autoras negras.

Jorge Ialanji Filholini: Escritor, produtor cultural e fotógrafo. Autor dos livros de contos “Somos mais limpos pela manhã” (2016), finalista do Prêmio Jabuti, e “Somente nos cinemas” (2019).

 

Casa de Antiguidades

 

Ano: 2020
Direção: João Paulo Miranda Maria
Roteiro: João Paulo Miranda Maria e Felipe Sholl
Elenco principal: Antonio Pitanga, Ana Flavia Cavalcanti, Aline Marta Maia, Sam Louwyck
Gênero: ​Drama
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: 4,5