“Ainda somos os mesmos, e vivemos como nossos pais“. Essa é a mensagem contida no ápice da música de Belchior, eternizada por Elis Regina. Quando cantamos estes versos nos karaokês de todo o país, num momento de súbita realização, ou desabafo de derrota, surge-nos sempre a dúvida: como superá-los? Eles, nossos pais? Pela presença ou ausência, a educação e o DNA nos parecem como prisões de vida – soma-se a isso o eterno retorno de nosso cenário político, criança que teima em dar um passo pra frente e dois pra trás.
Parece que a obra parte dessa sugestão, te prometendo duas horas de uma experiência indispensável. Como Nossos Pais como que adentra na espessura mesma da vida, nos trazendo questões quase universais numa cinematografia despida e delicada. De forma parecida com os filmes de Hirokazu Koreeda, o filme de Lais Bodanzky versa sobre mães, pais, filhos, tradição, família, mas com a característica principal de discutir esses temas sob a perspectiva feminina de Rosa, interpretada de forma talentosa por Maria Ribeiro.
Aqui, ela é a conhecida super-mulher contemporânea: mãe de duas filhas, provedora do lar e casada com o relapso Dado (Paulo Vilhena). Só que Rosa é cria de outra super-mulher, Clarice (Clarisse Abujamra) – socióloga, avó divorciada e fumante inveterada. Assim, toda a situação coloca à prova a capacidade de Rosa cumprir suas funções sociais de forma adequada, e a estrutura do filme se pauta na sua obstinada tentativa de resolver as situações.
No mundo atual é difícil inventariar as diversas influências que transpassaram e moldaram nosso corpo e mente, mas uma coisa é certa: nossos pais tem muito a ver com isso. Uma questão que o filme nos coloca é: quem somos nós, frente a eles? O que é meu, e o que é deles? Se Rosa anda sempre na sombra de sua mãe, mulher forte, independente e de pazes com o seu destino, como saberá quando ela está seguindo o seu próprio destino, e não imitando Clarice?
A pergunta se volta sempre para nós: quando e como não repetir os mesmos erros? É um pouco amedrontador pensar na ideia de que talvez existam erros que se encaixam em determinadas épocas de nossas vidas – equívocos que podem ser exemplificados pela trajetória de vida de nossos pais e/ou pessoas mais velhas: o casamento, os filhos, a traição, o divórcio, etc, num ciclo aparentemente sem fim.
E neste filme outra coisa também é certa: estas duas mulheres buscam suas forças e respostas à despeito dos homens de sua vida. Sem o companheirismo de pai ou marido, elas têm que ser super, por falta de parceria e comunhão. É um alerta, como em Mad Men (Matthew Weiner, 2007-2015), mostrando que, se a mulher atual vem conquistando a igualdade de gênero, mudando e superando situações, o homem continua parado e perdido, sem conseguir acompanhar o passo. Por exemplo, Peggy, Joan, Megan e Betty conseguem aos poucos se desgarrar de suas posições subalternas, enquanto Don e Roger, do alto de seus egos, se debatem sem sucesso em busca de redenção. De forma similar, a mudança de Dado nada segue o de Rosa, formando uma crise no seio de seu matrimônio.
O deslocamento da figura masculina habitual – como herói ou protagonista – ou a sua representação como ser inapto a cumprir suas funções, seja de pai, amante ou de marido, evoca levemente a necessidade de um novo mundo feminino, como o de Pedro Almodóvar, com destaque para Tudo Sobre Minha Mãe (1998). Na ausência e na dor, todas essas mulheres se juntam para sobreviver, ressignificando suas vidas, paixões e destinos. Já dizia Gabriel García Marquez: é a conversa entre as mulheres que todos os dias salva e redime o mundo.
Portanto, surge destes dois problemas – família e casamento – a solidão pesada de Rosa, essa complexa e corajosa personagem. Sua luta a levará para a descoberta de seu caminho próprio, fazendo da máxima do poeta uma pergunta: “Ainda somos os mesmos? E vivemos como nossos pais?”