Todd Haynes é um dos diretores mais inventivos de sua geração. Desde os anos 1990, cada obra do cineasta apresenta características autorais intensas. Ainda assim, buscar uma unidade entre seus filmes é um perigo. Há obras mais tradicionais, e outras completamente experimentais, com algumas até conseguindo encontrar um certo paralelismo – como ocorre nas trabalhos musicais Velvet Goldmine (1998) e Não estou lá (2007). No entanto, no geral, os seus filmes variam bastante no estilo e no conteúdo – ainda que, geralmente, trabalhem com personagens em condições excluídas ou marginalizadas. Contudo, podemos identificar que esses trabalhos variados são sempre marcados por um calculado trabalho de linguagem cinematográfica, que, em algumas obras importantes, foi desenvolvido a partir de sistemáticas referências artísticas. No seu novo filme, Sem Fôlego, Haynes continua nesse rigor, apresentando agora tramas paralelas de duas crianças, uma nos anos 1920 e outra nos anos 1970, que são surdas e fogem de casa. Após assistir o filme, fica uma sensação de felicidade pós sessão da tarde. No entanto, mesmo em uma fábula infantil, Todd Haynes consegue inserir vários toques de experimentalismo, mas que não prejudicam em nada a fluidez da narrativa.

O filme apresenta duas tramas principais. A primeira – com maior tempo de tela – é a de Ben (Oakes Fegley), um jovem garoto cuja mãe faleceu em um acidente na livraria onde trabalhava. Devido ao ocorrido, ele passa a morar com a tia. Em uma noite, durante uma visita a antiga casa de sua mãe, Ben está usando o telefone quando um raio atinge a rede elétrica, o deixando surdo. No hospital, recuperado, mas ciente da situação, ele foge em busca de seu pai, um homem que ele nunca teve notícias. A segunda trama se passa em 1927 e retrata a trajetória de Rose, uma menina surda e deslocada, cuja mãe é uma atriz famosa e distante, interpretada por Julianne Moore. Infeliz em casa, a jovem foge para procurar a sua mãe, que briga com ela quando a encontra durante o ensaio de uma peça teatro – ocasionando uma nova fuga da menina. Rose é interpretada pela atriz surda Millicent Simmonds.

As duas tramas são relativamente simples e o paralelismo pode se tornar quase didático, já que mostra duas situações semelhantes. No entanto, Todd Haynes realiza um intenso exercício de linguagem ao reconstruir a Nova York de 1927 não somente no seu cenário, mas também na linguagem do cinema mudo daquela época, que encontrou o seu fim justamente nesse ano, com o lançamento de O cantor de Jazz. O que mais me fascina nessa reconstrução é que ela não se limita como exercício formal, pois mesmo respeitando vários códigos do cinema mudo, essa parte denota uma simplicidade que diz muito sobre (parte) do cinema contemporâneo de Haynes, colocando em simultaneidade diferentes expressões cinematográficas. Explico: em sua diferentes vertentes, o cinema mudo é marcado por uma expressividade da imagem, que trabalha com recursos como distorções de cenários, acrobacias físicas, simbolismos visuais ou diferentes experimentos de montagem. Uma das conquistas do cinema posterior é a consolidação de registros de momentos mais simples, que podiam cair na mediocridade técnica dos teatros filmados ou nos brilhos de Vigo ou Renoir. Claro que isso não é uma novidade do cinema falado, pois alguns filmes de King Vidor e Stroheim já tinham essa capacidade de dar tempo ao tempo em suas obras mudas, mas esse arejamento vai se solidificar posteriormente. Dito isto, ainda que seja fascinante assistir em Sem Fôlego alguns recursos que são raros atualmente – como os planos holandeses (inclinados) nas horas de tensão – os momentos mais tocantes são os que nada ou muito pouco acontece. Um exemplo: Sozinha no museu, Rose começa rodear um meteorito que está em exposição. Ela se senta. Do outro lado, três meninas alegres também se sentam e ficam conversando. A câmera então enquadra Rose em um primeiro plano frontal bem simples. Nós observamos Rose observar as meninas. O rosto dela é uma das imagens mais marcantes do filme. Com os cabelos desengonçados – deixando inclusive uma mecha cobrir o olho esquerdo – a imobilidade do seu rosto e a frieza da sua expressão transmitem todo o deslocamento e solidão da personagem, que se inclina e escreve no seu caderno: “Onde eu pertenço?” – simples, singelo e tocante. Na trama de Rose, o jogo entre recursos formais do cinema mudo e tempos mais silenciosos, torna essa parte, na minha interpretação, a mais rica do filme, ainda que as outras também apresentem a sua força.

Na trama de Ben, a homenagem aos anos 1970 não se dá tanto por referências ao cinema desse período, mas principalmente pelo uso da trilha sonora, que além de utilizar a canção (sempre emocionante) Space Oddity de David Bowie, também retrabalha a música black daquele momento quando o personagem chega em Nova York. Mas o que se percebe também é uma intercalação entre momentos sutis com outros mais intensos. A reconstituição de época é um dos destaques dessa parte. A própria cidade de Nova York se torna um personagem em alguns momentos, com a câmera se deslocando, rapidamente, dos personagens centrais para mostrar um ou outro transeunte, que vivem normalmente os seus cotidianos. O protagonismo momentâneo do mundo urbano intensifica a condição solitária de Ben. Nesse sentido, a fotografia de Edward Lachman só reforça como a cidade o engole. Ainda que os personagens usem roupas relativamente chamativas, as cores não explodem no espectador, como ocorria em Longe do Paraíso (2002) , mas são amenas, diluindo os indivíduos da multidão. Nos primeiros segundos de alguns planos é até difícil encontrar Ben. Após o localizarmos na imagem, é estranho o sentimento que surge ao constatarmos como a fragilidade daquele corpo de criança pode ser tão diluída no cotidiano banal e indiferente de um meio urbano.

Ainda que não rompa com a linearidade dos fatos, o filme de Todd Haynes não busca esconder a sua linguagem cinematográfica. Pelo contrário, ele a expõe, nos fazendo lembrar em vários momentos que o que assistimos é uma obra cinematográfica – e portando artificial – mas que não é isenta de empatia. A trilha sonora de Carter Burwell, por exemplo, na trama muda é essencial, claramente, pois acompanha rigidamente os acontecimentos em tela, revivendo um tipo de trilha que não existe mais. Entretanto, na trama de Ben ela é impactante não somente em momentos chaves ou de intensidade, mas também nas partes mais singelas, se tornando tão viva quanto o material fílmico. A montagem também não se preocupa em ser invisível e organizar os acontecimentos de modo limpo e bem concatenado. Ela realiza pequenos cortes abruptos e inesperados, como quando Ben está olhando a sua prima ouvindo David Bowie e há um corte seco segundos antes do refrão clássico This is Major Tom to ground control. Tal montagem, em um filme de mensagem tão clara, ativa o espectador, mas esses cortes não são predominantes. Acredito que poderia ser mais (positivamente) desconcertante se essa montagem inesperada fosse recorrente.

As duas primeiras partes de Sem Fôlego são radicais: uma recria a Nova York do cinema mudo e outra a Nova York dos anos 1970. As homenagens não estão escondidas, porém escancaradas. Mas Todd Haynes é tão inventivo que depois, na terceira parte do filme, radicaliza uma outra proposta, que é construída a partir de uma fala extensa, contrastando radicalmente com o silêncio que predominava até então. Não vou entrar em informações sobre a trama para não dar spoilers, mas, no final, Ben descobre o que aconteceu com seu pai ao ler várias folhas de papel escritas por uma mulher, já que ele estava surdo. Nessa parte, toneladas de informações são jogadas no espectador sem dó e nem piedade. Mas sem dar tempo para nos preocuparmos em como esse tipo de desfecho pode ser problemático, Haynes ilustra tudo o que está sendo dito por meio de uma reencenação com bonecos e cenários de maquete. O artificialismo da imagem – já quebrado pela linguagem do cinema mudo – é quebrado novamente com uma estética nova até aquele momento. A escolha por essa estética não é gratuita, pois está relacionada com o trabalho de modelagem realizado por uma personagem importante. No entanto, a opção não se ancora em detalhes de roteiro, e vai além, servindo mais como suporte lúdico para a trama fabulosa do filme.

Os jogos entre passado e futuro permeiam as duas primeiras partes do filme. Na terceira, as duas temporalidades se encontram, mas revelam um passado misterioso. Essa rememoração é feita de maneira artificial, mas ainda afetuosa. Em todos esses jogos de enredo, existem sentimentos humanos, como a solidão e a amizade, que unem as diferentes temporalidades. Até aí, o filme poderia ser tornar mais um singelo e bonito exemplo de aventura infantil (o que de fato ele é). Mas Haynes também insere nessa delicadeza uma ternura muito grande pelo próprio fazer artístico e cinematográfico. Tal paixão é, em alguns momentos, escancarada, como na utilização de elementos de linguagem do cinema mudo, mas também é tênue, como quando observamos o quadro de Virginia Woolf escondido no quarto da mãe de Ben ou quando no final, já na parte da reconstituição com bonecos, há uma recriação de um plano clássico do filme A turba (1928), de King Vidor. O cinema, vale ressaltar, não surge somente como uma homenagem, mas é principalmente um elo entre os sentimentos humanos. No museu, por exemplo, os personagens brincam e em um momento atravessam vários painéis que apresentam diferentes momentos da história do mundo. Os enquadramentos escondem as emolduras dos painéis, não “expondo” que eles estão dentro de um museu – ainda que o espectador saiba disso perfeitamente. Mas, ainda assim, quando os corpos dos meninos ficam em frente a esses painéis, a imagem aparenta usar um efeito de truncagem, pois lembra, sutilmente, as cenas que usavam cenários pintados e modificáveis no cinema clássico. A referência – bem tênue – não é gratuita, mas fornece justamente um abrigo a duas crianças deslocadas, que se esquecem de seus problemas ao se divertirem no museu. Ou seja, diante da falta de perspectiva e perdição dos protagonistas de Sem Fôlego, Haynes oferece uma centelha de esperança por meio de referências, diretas e indiretas, a história do cinema.

A trama de Sem Fôlego é delicada, mas que não quer ser engenhosa. O mais interessante é a forma como esse conteúdo ganha vida. Assim, algumas questões da trama realmente não são tão bem trabalhadas. A amizade entre Ben e Jamie (Jaden Michael) tem um ótimo inicio, com os dois se encontrando na rua e posteriormente brincando no museu. No entanto, há um conflito entre os dois, e a resolução desse conflito é superficial e não convence, o que influencia no tom da mensagem final do filme, pois parte dela é um elogio a amizade, tendo como base a ligação entre os dois meninos. Dessa forma, a mensagem perde um pouco o impacto pois ela parte de uma amizade que, dentro da narrativa, não foi tão bem finalizada no terceiro ato – o que não compromete os delicados momentos de companheirismo retratados principalmente no segundo ato. Pouco antes da terceira parte, uma série de coincidências resolvem elementos de roteiro rapidamente, o que já incomoda. E já no final, as informações reveladas são muitas, causando uma claustrofobia de revelações no espectador. No entanto, a proposta visual dada ao final é tão fascinante, que não me preocupei tanto com esse possível problema.

Todavia, é preciso ressaltar que os bons elementos formais que chamam a atenção do espectador não são predominantes, ainda que tenham seu destaque, fazendo com o que o filme apresente vários e pontuais recursos interessantes – como a montagem inesperada, o protagonismo urbano da Nova York dos anos 1970, a recriação do cinema mudo ou as maquetes da terceira parte. Essa característica não é necessariamente um defeito, mas pode frustrar o espectador que almeja a permanência de algum elemento que o encantou, ainda que o silêncio tenha a sua importância no conteúdo e na forma geral do filme. Particularmente, eu gostaria de ter visto mais a recriação do cinema mudo. Mas acredito que tal fragmentação defeituosa fornece uma qualidade distinta ao filme de Haynes, que cria várias camadas na obra justamente a partir das diferentes propostas formais que radicaliza. A questão da surdez surge não surge somente como a falta de audição dos personagens principais, mas também funciona como recurso cinematográfico quando pensamos o quão fascinante é o cinema mudo que Sem Fôlego resgata, um cinema que, em parte, justamente não precisa da som (ainda que ele seja extensamente trabalhado, tanto na rica trilha sonora quanto nos diálogos finais). E o artificialismo escancarado da terceira parte diz muito sobre um fazer cinematográfico que encontra sua magia ao se revelar como obra cinematográfica.

Somente ao descrever as várias camadas que existem em Sem Fôlego é possível perceber como a obra apresenta certa complexidade, ainda que ela não influencie na simples mensagem afetuosa que um filme de aventura de crianças poderia ter. Considero, inclusive, esse trabalho mais radical do que outras obras de Haynes, como Carol (2015), Longe do Paraíso ou a série Mildred Pierce (2011). No entanto, diferentes desses trabalhos, que abordam temas mais sérios, o novo filme de Haynes entra em um campo mais universal e menos polêmico, mas sem deixar de lado a inventividade formal que marcou sua cinematografia desde o inicio.

Sem Fôlego

Sem Fôlego (Wonderstruck)

Ano: 2017
Direção: Todd Haynes
Roteiro: Brian Selznick, baseado em um livro de sua autoria.
Elenco principal: Julianne Moore, Millicent Simmonds, Oakes Fegley
Gênero: ​Drama, mistério
Nacionalidade: EUA

Avaliação Geral: