Essencial tanto em humanos como em animais, a capacidade de conexão sexual e emocional é a razão óbvia de espécies se perpetuarem durante toda a História e existirem atualmente. O ser humano é tido como o único com autoconsciência e capacidade de nutrir empatia, embora algumas pesquisas sugerem o contrário e certos animais também compartilham dessa habilidade.
Mas é exclusivo nas relações humanas criarmos laços emocionais, projetarmos experiências e sentimentos em um próximo, colocarmos um significado especial para a fala do outro, o contato físico, o sexo, a união e o surgimento de um bebê com aquele indivíduo. As conexões humanas são quase básicas para nós, embora quase nunca fáceis ou compreensíveis. E é justamente esse conflito de necessário e quase inalcançável e urgência emocional e sexual tanto em humanos e animais que o húngaro Corpo e Alma trata sobre.
Já se iniciando com uma melancólica e poética sequência onde um cervo macho e outra fêmea se veem sozinhos em uma floresta acobertada de neve, eles passam o tempo caminhando juntos, procurando alimento e água, fazendo companhia um para o outro. Intercalado a essas sequências, acompanhamos Endre (Géza), diretor financeiro de um abatedouro de bois, que se vê curioso com a tímida e reclusa inspetora de qualidade Mária (Borbély). Posteriormente, os dois descobrem que todas as noites têm o mesmo sonho onde são cervos em uma floresta. A partir daí eles passam a compartilharem suas experiências, tanto em sonhos quanto no mundo real.
O roteiro por si só, escrito também pela diretora Ildikó Enyedi, já permite uma série de interpretações e fortes símbolos que formam uma iconografia marcante nessa obra, já pela escolha dos animais que os representam nos sonhos: o cervo na simbologia representa a fecundidade, onde devido aos seus grandes cifres, é geralmente comparado a árvore da vida, objeto que também preenche a floresta dos sonhos de Endre e Mária.
Não trabalhando apenas com metáforas meramente postas, Enyedi é inteligente o suficiente para utilizar da montagem e dos elementos de seu roteiro para criar fascinantes paralelos que voltam a discussão sobre o envolvimento com o próximo. Ao se passar em um abatedouro, Enyedi não tem parcimônia em registrar explicitamente um boi sendo abatido, seu cadáver sendo carregado ou mesmo sua cabeça sendo cortada. O mal-estar de testemunhar momentos como esse aumentam quando a diretora decide focar nos bois apenas presos, esperando para serem abatidos e tendo um pouco de prazer com o resquício de raio de sol em suas cabeças.
Ao estabelecermos essa empatia por um animal como um boi (que nada mais é do que o macho da vaca castrado, cujas funções são como gado de corte ou arar terra) e a vacuidade de sua existência ali naquele lugar, enxergamos um pouco isso na solitária e entristecida vida do casal protagonista, que sozinho no trabalho e em seus lares, parece viver sem perspectiva alguma do que o futuro pode lhe trazer. Há até mesmo um momento onde Mária, assim como o boi, também sente um deleitamento do sol que bate em seu rosto, revelando uma migalha de esperança em sua vida.
Criando correspondentes até mesmo na forma como Mária age pela primeira vez que Endre a vê de longe, onde ela arrasta os pés para trás de maneira tímida e semelhante com um animal intimidado, os seus comportamentos físicos transparecem com nitidez a introspecção desses personagens, auxiliados pelos belíssimos trabalhos de atuação tanto de Morcsányi Géza quanto de Alexandra Borbély.
Géza faz de Endre um homem recluso em sua sala, inicialmente frio e distante e que cujas dores e medos são palpáveis na sua forma de olhar e falar com os outros e sua paralisia em um de seus braços traduz seu receio do que os outros podem falar ou das coisas cruéis que já foram ditas a ele.
Já Borbély torna sua Mária um misto de inteligência quase sobrenatural, como sua habilidade de reconhecer diferenças milimétricas ou de guardar datas e diálogos, com infantilidade de uma criança, ao usar bonecos e saleiros para ensaiar suas conversas (e o boneco que representa Endre não ter um braço é ao mesmo tempo triste e poético) ou ao insistir em ir no seu terapeuta infantil, cuja sala é preenchida de bonecos e pelúcias. Não apenas isso, mas seu olhar quase sempre distante evidencia a mesma racionalidade que usa para entender suas emoções e o amor, fazendo uma inadequada pesquisa de campo do assunto em um parque.
Outro personagem curioso que Enyedi usa para discutir o papel que o homem acha que tem que assumir é o do amigo de Endre, Jenö (Schneider), cujas conversas com Endre giram em torno de como “o homem precisa se posicionar e ser o líder, não permitir que a mulher dê ordens a ele”, soando como um macho-alfa para Endre, mas no segundo seguinte abaixa a cabeça e concorda com o pedido da esposa em buscar o filho na escola. Além da sua insegurança como marido e homem, onde questiona se sua mulher “deu” para todos do trabalho, revelando a mediocridade da figura masculina.
Isso configura novamente na questão que Enyedi traz de como, diferentes dos animais, as relações humanas são seguidas por normas sociais não escritas e supostas atribuições que homens e mulheres necessitam fazer, mas diferente da mentalidade exageradamente racional de Mária, não são precisas sempre. Por isso, a grande virtude do filme se trata em esmiuçar a natureza conflitante e ilógica do amor e dos relacionamentos.
Mesmo dividindo uma intimidade tão grande que é o sonho de uma pessoa, Mária e Endre o tempo todo parecem estarem descompassados com a ação um do outro, gerando diversos dilemas e dúvidas quanto o que um sente exatamente pelo outro, mas que não hesitam em se entregarem, revelando a aparente carência que não apenas eles, mas que todo ser humano tem em se abrir ao próximo e externar seu âmago.
Portanto, ao contrário do que Mária parece buscar, que é uma conclusão definitiva e exata dos sentimentos que guarda, o ideal e mais próximo dessa abstração é o ideal imaginário do que a humanidade tem sobre o que se trata o romance e afeição, que opera justamente no âmbito dos sonhos e da imaginação e no qual o casal se sente pleno ao se contentarem com a companhia do outro.
É mais intrigante ainda que as frustrações de ambos se dão muito mais na realidade e nos ambientes comuns como o refeitório do trabalho (observe como em mais um desentendimento dos dois, Enyedi os enquadra com uma barra os separando), fazendo com que o tempo todo conciliem esses dois universos, que manifestam os que eles querem e projetam do que eles realmente têm.
Nisso, a beleza e poesia cheia de subtextos (a frase “estou com sono” ganha um significado totalmente tocante) desse admirável Corpo e Alma, cujo título remete novamente a dualidade da necessidade física e emocional do ser humano, é que ao se recusar de explicar o fenômeno que faz os dois dividirem o mesmo sonho (outra qualidade do filme) só reconhece que o romance entre Mária e Endre se dá por algo fantástico, assim como todas as relações e laços que todos nós somos capazes de criar com o próximo, que nasce de uma natureza absurda e que foge totalmente da racionalidade e lógica, mas extraordinária e bela.