Por Rafael Ferreira
Ir ao cinema é uma experiência antropológica interessante, observar a reação do público em determinados filmes diz muito sobre o seu perfil, em filmes como A Bruxa ouvia-se um “aff, que filme ruim”, ao final da sessão, e no extremo oposto, ao final de Deus Não Está Morto 2 ouvia-se as pessoas comentando o quanto gostaram. Mas o fato de que as pessoas que assistiram DNEM2 terem gostado não diz muito sobre a qualidade do filme, apenas revela que o filme dialoga bem com o seu público.
Deus Não Está Morto 2 é um filme/propaganda cristão conservador sobre a professora Grace Wesley (interpretada por Melissa Joan Hart, por onde você andava?), que menciona Jesus Cristo em sua sala de aula, um dos alunos faz uma denúncia, acarretando no afastamento da professora, e por conseqüência levando o caso aos tribunais, pois a mesma defende não ter feito nada de errado, (e não fez mesmo). A partir deste ponto, se torna um filme de tribunal. Bem, esta é só a linha narrativa principal do filme, as outras não precisam ser mencionadas neste parágrafo.
Depois que já conhecemos essa premissa, já podemos apontar os problemas com o filme, a começar pelo fato de que na maioria dos filmes de tribunal o público torce pelo lado mais fraco, ou seja, do acusado, não existe uma balança equilibrada neste tipo de filme, há até um momento em que a fotografia parece forçar isto, ao jogar um feixe de luz vindo da janela sobre o advogado da professora, enquanto isso, o acusador representa o lado negro da força. Chega a incomodar a forma caricata e vilanizada que o diretor Harold Cronk (mesmo do filme anterior) retrata o lado oposto, basta olhar para o rosto advogado de acusação, Peter Kane, (interpretado por Ray Wise, de Twin Peaks) que pensamos “esse cara é um charlatão”, e não é só um pensamento preconceituoso, assim que pega o caso, ele declara algo do tipo “vamos ganhar muito dinheiro com este caso!”, só faltou esta cena se passar num ambiente escuro, corvos voando ao redor dele, uma risada maligna, e trovões acompanhando a risada. Pior do que isso é o momento em que ele diz “vamos provar de uma vez por todas que Deus está morto”.
Outro momento constrangedor, eu diria até ofensivo para um ateu, se é que há algum (além de mim) que ousa assistir a este filme sabendo de antemão o seu conteúdo, acontece logo no início, portanto não é nenhum spoiler: Na escola onde Grace (a propósito, que nome mais óbvio) dá aula há uma aluna, Brooke, que está se sentindo melancólica após a morte do irmão, e claro isso reflete no seu desempenho escolar, Grace conversa com ela na tentativa de consolá-la (um diálogo muito forçado). Ao chegar em casa, Grace conversa com seu pai sobre a menina, “Brooke parece estar perdida”, ao que o velho comenta “este é o problema dos ateus”.
Quem continuar assistindo o filme após esta cena verá que o filme não quer apenas tratar do caso da professorinha que mencionou Jesus numa sala de aula, mas uma tentativa de provar legalmente que “Deus Não Está Morto”, e os argumentos para isso são mais dúbios, por vezes faz parecer que aproveitou-se da oportunidade para divulgar outros livros, usados durante o caso para defender a existência de Deus pelos próprios autores, os argumentos se resumem a “é incontestável”, e até mesmo um detetive que lê várias passagens de Bíblia tentando encontrar fatos que se completem, porém, o filme nem sequer tem a ousadia de apresentar pontos de vista contrários, talvez por medo de que vários cristãos questionem sua fé, ou talvez porque o biólogo geneticista Richard Dawkins não topou participar do filme.
E por falar em levantar questões, uma das histórias paralelas é justamente sobre isso, um jovem de origem japonesa que surge com 147 questões para o Reverendo Dave, um dos personagens mais queridos entre os fãs do primeiro filme, e que aparentemente sente prazer em responder a essas perguntas, até fico curioso para saber quais são essas perguntas, e como o Reverendo as respondeu sem se contradizer, ou sem derramar uma gota de suor. Outra coisa que me questiono é: qual o motivo dessa linha narrativa? Bem, em determinado momento ele se encontra com a personagem Brooke para ativar sua fé, mas isso poderia ser feito de outra maneira, e no final, o garoto japonês vai contra os princípios de sua família e se converte ao cristianismo para espalhar a palavra de Deus ao Japão, faz parecer que o filme pretende impor seus ideais sobre outras culturas, e para quem conhece bem a história, isso não acaba bem. E por falar em história, também sabemos o papel opressor que a igreja católica, mas este filme faz parecer justamente o contrário, que o catolicismo está sendo oprimido.
Outras histórias paralelas no filme envolvem claro, o Reverendo Dave, como um dos jurados no caso Grace Wesley; uma blogueira que acabara de se curar de um câncer, que é conhecida de um dos membros da banda gospel The Newsboys (fazendo sua propaganda, cantando a mesma música do filme anterior), e por incrível que pareça, nada disso leva à lugar algum, a linha narrativa do Dave tenta puxar um gancho para um terceiro filme, que por razões mercadológicas é uma certeza de que terá. Talvez este seja o maior problema com o filme que, de tão manipulativo, se faz evidente esta manipulação, é como se estivéssemos assistindo a um show de marionetes, mas prestássemos mais atenção no títere do que nos próprios bonecos. Veja um exemplo disso: logo no início do julgamento, a câmera passa pelas pessoas que assistem, e foca em uma moça com mechas azuis no cabelo, na primeira vez eu pensei “a câmera foca nela porque ela é bonita”, na segunda vez que ela aparece pensei que ela pudesse ser filha do diretor e queria uma participação no filme, na terceira vez eu pensei “não é possível que ela é uma mera espectadora, ela aparece a cada dez ou quinze minutos no filme, não fala nada, não faz nada, só reage, é claro que no final ela vai ter alguma participação na história”. Dito e feito, nada sutil esta manipulação, e no contexto do filme, é como se Thêmis (a deusa representada em estátuas, segurando uma balança e com uma venda nos olhos) tirasse suas vendas por um momento, isso mostra a falta de experiência do diretor Harold Cronk, ou isso ou ele menospreza o público, para sustentar meu argumento, percebam que o mesmo garoto que faz a denúncia anônima (ele aparece rapidamente na escola), aparece mais tarde cantando na porta da professora Grace Wesley para lhe dar apoio.
O filme reforça o caráter de propaganda manipulativa ao terminar com um letreiro dizendo às pessoas que assistiram a este filme para chamarem seus amigos para fazerem o mesmo, e é claro o bom cristão vai convidar outros cristãos, para quem tiver curiosidade de conferir o site oficial do filme, verá que é possível comprar ingressos para grupos (uma ação até mais louvável do que a ação feita pela Igreja Universal para promover Os Dez Mandamentos), verá também a quantidade de cartazes, materiais de divulgação, releases, um marketing tão pesado para uma produtora não hollywoodiana.
Em conclusão, Deus Não Está Morto 2 é um filme com caráter de propaganda religiosa, que apenas funciona para o seu público-alvo, fiéis da igreja católica e evangélica. A maneira como retrata ateus é o suficiente para repelir este público. E falha como cinema por deixar evidente as tentativas de manipulação.
PS: O terceiro filme deveria retratar aquele caso ocorrido no Ceará, onde a dona de uma boate processou uma igreja evangélica, alegando que o poder de oração dos fiéis e a intervenção divina fizeram com que um raio caísse no estabelecimento. Leia a matéria, vale à pena.
Deus Não Está Morto 2 (God’s Not Dead 2)
Ano: 2016
Direção: Harold Cronk
Roteiro: Chuck Konzelman, Cary Solomon
Elenco principal: Melissa Joan Hart, Jesse Metcalfe, Hayley Rrrantia, David A. R. White, Ray Wise, Ernie Hudson.
Gênero:
Nacionalidade: Estados Unidos
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