Cicero Pedro Leão
Estreia na direção de Leandra Leal, Divinas Divas é um filme que se joga de braços abertos na nostalgia de oito artistas travestis pioneiras no Brasil. No entanto, o documentário vai além e se destaca por demonstrar como a energia daquelas performers, em efervescência a partir dos anos 1960, permaneceu intensa posteriormente. Tão importante quanto o resgate histórico dessas divas, é o retorno aos palcos que elas realizam, apresentando também, de forma pontual, várias trajetórias marcadas por felicidades e tristezas. O espectador acompanha tudo isto como se estivesse nos bastidores de um grande espetáculo, por meio de uma câmera que caminha entre coxias e camarins, tanto do teatro quanto da vida.
Se um documentário convencional é marcado pelos relatos dos indivíduos em foco, com o uso de imagens de registro para ilustrar as falas, Divinas Divas vai em outra direção. São poucos os vídeos antigos, mas sinceramente não sentimos tanta falta deles, pois o filme quer mais mostrar as marcas do tempo nessas artistas. Para tanto, um show de retorno é essencial. A história não fica presa em um passado distante, mas é reencenada por corpos envelhecidos, que buscam na arte uma forma de superação – o filme configura claramente em uma reflexão transgressora sobre a arte, cuja ponta de lança está na vida vivida dia a dia e não em bandeiras políticas. Tal constatação é peculiar, já que essas performances começaram em plena ditadura militar.
O retrato não é feito de forma distante, generalista e objetificante. A proximidade latente é consequência do cruzamento da história da própria Leandra Leal com essas artistas, já que seu avô é Américo Leal, dono do teatro Rival, no Rio de Janeiro, que abrigou as primeiras apresentações das travestis. A decisão de ressaltar esta relação foi tomada pouco antes do filme ser finalizado. A presença de Leandra, contudo, não se faz por meio do plano e contra-plano convencional. Primeiramente, há em alguns momentos uma narração em voz over da própria diretora, relatando a sua ligação com aquela geração. Além disso, é interessante notar como a própria mise-en-scène do filme carrega um pouco dessa história, já que muitas vezes a câmera não fica em um ponto fixo, mas acompanha sorrateiramente os momentos de preparo das atrizes, como se fosse a observadora afetuosa e curiosa que Leandra foi outrora. Ela raramente aparece em frente das câmeras e quase não ouvimos a sua voz durante as entrevistas. No entanto, ela está sempre ali, como nos lembra as próprias artistas, que hora ou outra soltam um “Leandra” em seus relatos, reafirmando que elas estão conversando com um interlocutor próximo, de carne e osso e impossível de negar.
Ao lado desse movimento mais orgânico, há também uma estilização bem elaborada quando o show Divinas Divas é filmado. A fotografia de David Pacheco é cuidadosa no trabalho de iluminação, fornecendo todo o glamour necessário para essas divas – há um plano em contraluz que é de tirar o fôlego, fazendo com que esse filme seja obrigatoriamente visto no cinema. No entanto, é preciso ressaltar que a obra não exclui as dificuldades que ocorreram para essa volta, mostrando algumas discussões e erros. Tal retrato, entretanto, só aumenta a autenticidade do filme. Das oito divas, algumas se tornaram famosas, como Rogéria – a “travesti da família brasileira” – mas outras se distanciaram do meio teatral. Ao demonstrar algumas complicações, o filme subverte o seu próprio foco e aborda outros temas, alguns rapidamente, como a prostituição e as drogas, e outros de forma profunda, como a própria velhice – basta lembrar a Marquesa comentando, emocionada, que aquele retorno será um lindo canto de cisne. Como a própria Leandra Leal explicou, o filme não é um tratado sobre as travestis no Brasil, mas a partir de seu foco bastante especifico, ilustra facilmente as várias dificuldades que essas pessoas passam por aqui.
Nem tudo são espinhos. Pelo contrário. Diante das mais difíceis provações, ouvimos lindas histórias de amor que vão emocionar qualquer um que tenha coração. O humano se torna o foco. Aqui, a simplicidade da palavra falada é glamourosa por si mesma. Ver Fujika Halliday cantando a música Abandono, no interior de sua casa, ao lado de um pequeno cd player, é emocionante. Há um plano-sequência do filme que acompanha as artistas caminhando na rua em direção ao teatro Rival. Elas ainda não estão produzidas, mas naquela simples locomoção já é nítido como uma postura romântica se tornou quase inerente aos seus corpos. Posso continuar por várias linhas os momentos lacrimejadores, mas vou parar por aqui. Resumindo: em tempos de Bolsonaro, filme necessário para qualquer pessoa. Simples assim.
Ano: 2016
Diretor: Leandra Leal
Elenco Principal: Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K, Fujika de Halliday, Eloína dos Leopardos, Marquesa e Brigitte de Búzios.
Gênero: Documentário
Nacionalidade: Brasil
Veja o trailer: