O luto, muitas vezes, se trata também da procura incessante de algo que já não é possível, que se tornou inalcançável, do desejo de criar cenários e pensar em coisas que gostaríamos de dizer, mas que agora é tarde demais.
É esse sentimento que o cineasta Ryûsuke Hamaguchi consegue, com muita sensibilidade e delicadeza, transmitir durante as quase três horas de Drive My Car.
Baseado em um conto de Haruki Murakami e roteirizado por Hamaguchi e Takamasa Oe, o filme tem uma longa introdução onde conhecemos o casal Yusuke Kafuku (Nishijima) e Oto Kafuku (Kirishima). Yusuke é um ator e diretor de teatro, enquanto Oto exerce uma função como roteirista. Muito abruptamente, Oto é encontrada morta por seu marido.
Dois anos se passam e Yusuke é convidado para dirigir uma peça de Tchécov, Tio Vânia, em um festival de teatro em Hiroshima. Todo o processo o levará a refletir sobre seu relacionamento e luto pela esposa, principalmente com a relação que passa a desenvolver com a motorista Misaki (Miura), que o leva da casa onde está hospedado para o teatro todos os dias.
Algo impressionante que Hamaguchi faz aqui é conseguir tornar um filme tão longo, e recheado de diálogos e pouca ação em algo tão fascinante e intrigante. Yusuke é vivido por Kirishima como alguém sempre de vestes pretas e escuras, e com uma expressão quase sempre melancólica e sisuda. O tempo todo nos perguntamos o que se passa em sua mente, o que tem sentido com a dor de sua esposa?
Geralmente a morte causa um endeusamento das pessoas, suas memórias passam a ser a mais positivas possíveis, no entanto, Yusuke não parece lidar com as melhores lembranças, mas sim com mágoas e desentendimentos que ele jamais esclareceu com sua esposa. O protagonista parece constantemente rememorar dores enquanto ouve uma fita da peça Tio Vânia (que traz temáticas muito semelhantes, diga-se de passagem) feita por Oto.
Vai se compreendendo que se tratava de uma relação que passou por um trauma muito forte anos atrás e, portanto, foi abalada para sempre. O que faz o casal recorrer a fugas, no caso de Yusuke, o teatro e Oto passa a criar histórias em um tipo de transe enquanto faz sexo com seu marido.
Aliás, a ideia da Arte como gozo, o momento em que se constrói e atinge o ápice, por si só, já se trata de um elemento brilhante da história que poderia render discussões aprofundadas. Também se tratam de duas formas de mitigação da dor e da realidade.
A inércia que o protagonista vive diante disso tudo é muito bem representada pela simbologia do carro e da sua motorista. Não podendo mais dirigir, Yusuke vira um mero passageiro de sua própria vida, permitindo que nem se veja mais ali. Em determinado momento, ele chega a falar para sua motorista que ela dirige de maneira tão plena que “sente como se não estivesse ali”.
O passado da motorista Misaki, também se assemelha muito a de Yusuke, e sua história de que parou em Hiroshima apenas porque foi o máximo onde conseguiu dirigir reflete perfeitamente a personagem e a melancólica que parece dividir com o protagonista.
Além de tudo isso, Hamaguchi usa de planos distantes, mostrando estradas e ruas de longe, enquanto vemos o carro vermelho de Yusuke, remete sempre a pequenez que os personagens parecem sentir persistentemente perante a vida que seguem apenas dirigindo,.
Que novamente nos traz a relação novamente com a peça encenada aqui, onde seu clímax dentro do filme se dá em uma das falas mais sensíveis de todas e que auxiliam seus personagens a encontrarem paz e se sentirem certos de que, conforme dirigem, encontraram um destino para poder chamar de seu.