A descoberta da brasilidade é um processo complexo. Vivemos em um colonialismo cultural que nos aproxima do american way of life seja na música, no cinema, ou na TV e nos distancia da nossa própria cultura. Permitir-se conhecer os anacronismos tupiniquins é, ao mesmo tempo, um prazer e um desafio recompensador. É justamente esse processo que acompanhamos em Guerra de Algodão, filme de Marilia Hughes e Cláudio Marques.
A história nos apresenta à Dora (Dora Goritzki), uma adolescente criada na Alemanha que vem pela primeira vez passar uma temporada com sua avó Maria (Taia Perez) em Salvador. Sempre em busca de retornar às terras germânicas, Dora começa a descobrir a história por trás das mulheres de sua família.
Feito com um grande apuro técnico, Guerra de Algodão é um filme de silêncios e longas sequências de contemplação. Os diálogos, quando acontecem, são curtos e diretos, acentuado a falta de intimidade entre aqueles que conversam. Já a fotografia, assinada por Andrea Capella, é muito limpa e organizada. Seus quadros são esteticamente corretos e muito agradáveis ao olhar.
Narrativamente, a câmera de Andrea diminui as personagens diante de grandes cenários. Mesmo dividindo um teto, Dora e sua avó vivem sozinhas e isso fica claro pelo espaço físico criado entre as duas, que estão sempre em pontos opostos da tela. À medida em que a trama avança, essa característica muda e ambas passam a ser enquadradas cada vez mais próximas uma da outra e também da própria câmera.
Tais elementos auxiliam na construção dos personagens. Dora, por exemplo, vive situações típicas da adolescência, como a busca por novos amigos, o desejo de voltar para casa e uma rebeldia com a avó. Contudo, por meio de pequenos detalhes vemos que a jovem possui uma alma de artista, algo que parece ser uma característica transmitida por gerações. Esse traço de personalidade fica evidente quando Dora começa a descobrir a história da avó, que foi uma das pioneiras do cinema e do teatro baiano.
Aos poucos, os achados da adolescente sobre a história da avó mostram como Maria foi um verdadeiro ícone feminista, que causou uma revolução na sociedade soteropolitana de sua época ao pregar a liberdade do corpo da mulher. Tal guerra também afetou sua família, uma vez que Maria priorizou o trabalho nos palcos.
Esse ato de empoderamento feminino possui como contraposto narrativo o machismo estrutural da sociedade baiana moderna. Dora enfrenta por diversas vezes pequenas violências contra seu corpo, às quais responde na mesma altura. Ainda que a princípio esses momentos pareçam um tanto afobados, Guerra de Algodão acaba achando uma maneira própria de abordar o tema e sucede em sua tentativa de mostrar como é ser mulher.
A produção também trabalha com delicadeza a questão racial. Ao longo do filme senti um estranhamento por ver uma maioria de personagens brancos em uma história que se passa em Salvador. Contudo, existe uma explicação. Enquanto vive em um mundo de privilégios brancos, Dora deseja apenas voltar para casa. Seu sentimento muda quando ela passa alguns dias na casa de sua amiga, onde é acolhida pela cultura afro e participa de encontros musicais e religiosos. Esse é o ponto de virada decisivo na história de Dora, pois é a partir disso que ela muda sua visão sobre o país.
A essa altura, a personagem já passou por um longo processo de desconstrução. Aos poucos, ela perde a necessidade de andar com sua bolsa de couro, objeto que utiliza como tábua de apoio emocional e a faz lembrar da Alemanha. Além disso, seu figurino, antes repleto de cores frias, dá lugar a roupas leves e coloridas, simbolizando o calor baiano que nela se instala.
Ainda que tenha algumas questões delicadas, como o design de som que por vezes é estridente, Guerra de Algodão é um filme de aquecer o coração. Seja por retratar uma Salvador fora do óbvio, seja por mostrar que uma garota precisa mais de uma amiga que de um namorado para enfrentar dificuldades, o longa consegue abordar questões atuais de maneira delicada e concreta. Acima de tudo, auxilia na descolonização cultural, ao mostrar um Brasil além dos clichês.
*Essa crítica faz parte da cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo