Assim como outros dispares, Marvel e Martin Scorsese estão fadados a serem opostos enquanto seus nomes sobreviverem. Isso foi causado primeiro por uma entrevista que o diretor de Taxi Driver (1976) concedeu à revista Empire em que, após ser perguntado a respeito dos filmes da produtora, dizia não gostar das obras do estúdio e que elas se pareciam mais com “parques temáticos” do que propriamente com uma obra de cinema da forma que ele conhecia.
Pouco tempo depois, após reações inflamadas, Scorsese deu uma resposta mais elaborada em formato de artigo publicado originalmente no jornal New York Times (que se você ainda não leu, recomendo fortemente que o faça), chamado Eu disse que os filmes da Marvel não são cinema. Deixe-me explicar. Num mundo tão polarizado quanto o atual, obviamente surgiram torcidas dos dois lados e o debate sempre ressurge, principalmente quando um novo Vingador surge nas telas, o que não seria diferente em Homem-Aranha: Sem Volta para Casa (2021).
Bom, fugindo de qualquer definição sobre o que seria ou não cinema, o fato é que a experiência de ir assistir a uma produção Marvel atualmente é bem diferente de uma sessão “comum” de cinema. As pessoas gargalham mais alto que o normal, muitas vezes com piadas que fazem referência a algo que nem está na tela, é na verdade um meme da internet ou algum acontecimento de outro filme ou série do estúdio. A morte de um personagem parece ser mais sentida, muitas vezes por ele já ter uma relação há bem mais tempo com o público. E por último, mas não menos importante, as palmas.
Dificilmente você verá alguma outra sessão em que o público bate palmas com um entusiasmo tão forte. Aliás, palmas na sala de cinema? Isso era algo para teatro, shows ou performances ao vivo. Pensando num nome já citado, como seria se alguém começasse a bater palmas no meio da sessão de O Silêncio (2016), de Martin Scorsese? Bom, não dá para saber, mas todo o resto que eu descrevi anteriormente aconteceu numa sala cheia, mesmo na pandemia, de uma sessão de Sem Volta para Casa.
Depois de tanta expectativa dos fãs, finalmente a Marvel / Sony (os direitos do personagem Homem-Aranha pertencem à Sony que o “empresta” para a Marvel que também cede algum dela), abrem de vez as possibilidades do multiverso. Coisa que já havia sido ensaiada em outros momentos como a série WandaVision (2021), na animação Homem Aranha no Aranhaverso (2018) e até no episódio anterior Homem-Aranha: Longe de Casa (2019). Aqui, após ter sua identidade revelada para o mundo por J.J. Jameson (J.K. Simmons) que recebeu um vídeo do vilão Mistério (Jake Gyllenhaal), depois de ser derrotado pelo herói, Peter Parker (Tom Holland), busca ajuda de Dr. Estranho (Benedict Cumberbatch) com algum feitiço que faça com que as pessoas esqueçam sua real identidade.
Porém, as coisas não dão muito certo e personagens de outras realidades começam a surgir na vida do Vingador caçula e o caos está instalado. Para nós que estamos aqui do outro lado da tela, as outras dimensões significam as duas versões anteriores do herói no cinema. A trilogia “original” entre 2002 e 2007, com Tobey Maguire e os dois filmes do Espetacular Homem-Aranha, entre 2012 e 2014 com Andrew Garfield. Essas realidades se entrelaçam com as da última versão que tem Tom Holland como protagonista.
A versão de Tom, desde sua primeira aparição em Capitão América: Guerra Civil (2016), buscava cativar o público mais jovem, pré-adolescente, que já cresceu assistindo à existência de um universo compartilhado de heróis no cinema e que não sonhavam ser somente um Homem Aranha ou o Batman, mas sim, um dos Vingadores. Essa última versão do cabeça de teia trabalha então com a ideia de que um desses jovens de repente começa a andar com figuras que tanto admiram e querem mostrar o quão responsáveis e dignos são de andar com eles.
É interessante perceber que o público é tão levado em consideração pelos produtores em Sem Volta para Casa que até a personalidade do Dr. Estranho foi alterada. Se nos Vingadores ele é uma pessoa mais centrada e responsável que analisa todas as realidades e possibilidades de um plano dar certo, aqui ele é uma espécie de “adulto legal”. Daqueles que todo adolescente queria ser amigo, só que com poderes. “Ah, vamos fazer essa trucagem aqui para ver o que dá. Não tem ninguém olhando mesmo”, disse o Dr. Estranho fazendo um feitiço que pode causar um caos sem precedentes para corrigir a vida de um adolescente. Contraste esse que aparentemente será corrigido no próximo filme solo do mago, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022), em que, pelo que o trailer indica, o personagem voltará à figura mais centrada e responsável que costumava a ser, misturando sua realidade com a de Wanda (Elizabeth Olsen).
Bom, mas voltando a Sem Volta para Casa, armado todo esse cenário, a produção vai costurar fatos, personagens e acontecimentos das três realidades do Homem Aranha. É interessante reparar que, apesar desse “toque Vingadores” com a participação do Dr. Estranho e tudo, o filme não extrapola muito os limites do universo do aracnídeo. Na verdade, ele trabalha no exato limite em que não seja necessário pedir a ajuda de algum personagem utilizando um tapa olho ou um martelo que solta raios.
Coisa que foi um dos (muitos) erros da primeira versão de Esquadrão Suicida (2016), por exemplo, em que o problema era muito maior que os personagens e que, num mundo compartilhado que estava se estruturando, era impossível algum herói de capa não aparecer para resolver a situação. Bom, na realidade chegam algumas ajuda para o amigo da vizinhança, mas vou deixar isso para você descobrir durante a sessão (se é que você já não sabe).
Nesse tipo de produção, não costumamos dar muito destaque para grandes atuações, porém existe uma aqui que merece: Willem Dafoe. O ator de longa carreira que já interpretou os mais diferentes papéis, incluindo a versão de Jesus Cristo de Martin Scorsese em A Última Tentação de Cristo (1988), retorna como Duende Verde / Norman Osborn. É uma daquelas escolhas que temos certeza de que não haveria ninguém melhor para interpretar (e faz pensar onde Scorsese estava com a cabeça para colocar ele de Jesus). Sua nova versão é mais perversa que a anterior e é capaz de colocar medo na plateia mesmo sem utilizar a marcante máscara verde. Sua perversidade em oposição a inocência do Peter de Tom, faz o impacto ser mais forte na plateia. Surge aquele sentimento de “esse ator está fazendo tão bem o papel de vilão que não sei se o odeio ou o amo”.
Talvez dizer que filmes da Marvel não são cinema seja algo muito forte. Para alguém que é tão próximo aos personagens pode soar como ofensa como o próprio Scorsese afirmou em seu artigo. Mas é inegável que as obras do estúdio estão para além do simples ato de fazer audiovisual e o Mickey, vem fazendo isso muito bem. Sabendo dosar entre o que o público quer e como surpreendê-lo. É exatamente o que Homem-Aranha: Sem Volta para Casa proporciona aos seus espectadores. Até mesmo os que têm mais inclinação à concorrente DC ou mesmo ao discurso do Scorsese (que é o caso deste que vos escreve) precisa reconhecer os méritos de uma produção que consegue despertar as mais diferentes reações físicas e emocionais no seu público.