Dois séculos de escravidão norte-americana levaram a mais um de segregação racial, encabeçada por programas de governo e endossada por uma população racista, que ainda não lidava com o fim dos privilégios. O apartheid, como ficou conhecido, agravou a relação já conturbada entre brancos e negros e favoreceu o surgimento da Ku-Klux-Klan, movimento racista e segregacionista paramilitar, fundado em 1866 no Tennessee.
A KKK era (e ainda é) uma organização que agia clandestina e violentamente contra a população negra e não-cristã americana, pautada pelo ódio a minorias raciais, sexuais e religiosas e quase sempre encoberta pelo governo e pela polícia, um caso famoso foi o linchamento público de Jesse Washington em 1916. O crime, provavelmente inspirado no filme de O Nascimento de uma Nação de D. W. Griffith, foi espetacularizado e fotografado a exaustão, para depois ser transformado em cartões postais.
Recentes acontecimentos vêm levantando a hipótese de que essa organização não se dissolveu, como foi o caso de Charlottesville, em que centenas de simpatizantes da KKK marcharam pregando o orgulho da “raça ariana” e o presidente norte-americano Donald Trump relativizou os atos de violência, num pronunciamento de moral e ética inteiramente questionáveis.
É nesse cenário que Spike Lee resolve adaptar a obra Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman). Com produção de Jordan Peele (Corra!) e aclamado no Festival de Cannes deste ano, o filme é baseado em fatos reais, numa obra escrita por Ron Stallworth, protagonista desta história que acompanha um policial negro em meados dos anos 1970 que tem a ideia de se infiltrar na Ku-Klux-Klan e desmascarar seus participantes, chegando inclusive a conhecer o grande mestre da KKK à época, David Duke.
Spike Lee presta uma homenagem ao gênero de blaxploitation, os filmes de ação da década de 1970 que eram destinados ao público afro-americano, dos quais derivam Shaft e as heroínas de Patrice – líder do movimento negro estudantil e interesse amoroso de Ron – Cleopatra Jones, Coffy – Em Busca de Vingança e Foxy Brown.
Lee é ácido, preciso e capaz de criar uma mescla de suspense-policial-dramático, que de um minuto ao outro te arranca risadas e te tira o fôlego. A fotografia sépia e alguns inspirados enquadramentos, despertam a vontade de transformar os frames em quadros a serem contemplados. Ele ainda tece, dentro da aparente leveza cômica da maior parte dos diálogos, uma tensão e angústia crescentes, pois apesar de na tela a nos transportar para 40 anos atrás, as coincidências com o momento atual são inevitáveis e aterradoras.
Quando já tinha finalizado as filmagens, Spike Lee ligou a televisão e viu na CNN a notícia do atropelamento em atropelamento em Charlottesville. Até então o filme tinha outro final, mas ele entendeu a partir daí, que tinha que mudá-lo para mostrar o assassinato e o fato de que a história de Ron está mais atual do que nunca.
Depois de Charlottesville, esse filho da puta (se referindo a Donald Trump), que define o momento não só para os EUA como para todo o mundo, teve a chance de dizer que apoiamos o amor e não o ódio. E o filho da puta não denunciou nem os putos do Klan, nem a direita radical, nem os filhos da puta dos nazistas (…) Os Estados Unidos foram construídos sobre o genocídio dos nativos e sobre a escravidão. Assim os EUA foram fabricados. Como diz meu irmão Jay-Z: fatos.
O fascismo bate à nossa porta e temos que nos manter alertas, pois ele troca de roupa, assume feições modernas, mas o velho e desprezível interior está lá, escondido sob a aparente segurança da internet, esperando de um terreno amigável para se revelar. Quem tiver olhos, que veja.
O filme foi lançado nos Estados Unidos no dia 10 de agosto de 2018, quando a manifestação de supremacia branca de Charlottesville completou um ano, chega aos cinemas do Brasil dia 22 de novembro, mas será exibido previamente na 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ao ser exibido no Festival de Cannes deste ano, no qual concorria pela Palma de Ouro, foi ovacionado por mais de seis minutos. Se eu estivesse lá, estaria com as mãos doendo de tanto aplaudir também.
Se eu não for por mim, quem será?
E se eu sou só por mim, quem eu sou?
Se não nós, quem?
Se não agora, quando?
Essa crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman)
Ano: 2018
Direção: Spike Lee
Roteiro: Spike Lee, David Rabinowitz, Charlie Wachtel, Kevin Willmott. Baseado no livro escrito por Ron Stallworth
Elenco principal: John David Washington, Adam Driver, Topher Grace, Alec Baldwin, Laura Harrier, Ryan Eggold
Gênero: Biografia, Policial
Nacionalidade: EUA