Fiz uma leve viagem ao tempo aqui no Cinemascope, com foco em resgatar qual foi minha última crítica escrita para o site: foi lá em 2014, quando encerrei o especial Chaplin e tomei a decisão de que não queria mais escrever sobre filmes. Uma decisão que foi importante, uma vez que assumi outros papéis no projeto, após alguns necessários meses de hiato.

O letramento racial, do qual venho cultivado entre meus estudos diários, fez com que meus olhos se abrissem para outros horizontes na vida, principalmente no cinema. Ao ampliar meus campos de estudos sobre Leituras de Imagens e Análises de Discursos, principalmente relacionadas às Audiovisualidades, fez com que eu enxergasse diversas entrelinhas no que tange à comunidade negra no Brasil e suas representações nesses meios de comunicação.

Medida Provisória veio em um momento em que me vi à prova de visualizar uma boa parte das teorias sobre Racismo e Afrofuturismo que mergulho diariamente. Inspirado na peça de teatro “Namíbia, não!”, de Aldri Anunciação e dirigida por Lázaro Ramos, a narrativa distópica gira em torno em um determinado momento do “futuro”, onde os negros brasileiros são “convidados” para participarem do projeto “Resgate-se”, como uma “oportunidade” de “reparação histórica” pelo período escravocrata brasileiro, para retornarem à África. 

O primeiro ponto interessante, dentro desse contexto, é que o sentimento dessa realidade retratada não é algo muito distante de nossas atuais e reais vivências. Quantas vezes você já leu, pelas mídias sociais ou até mesmo comentários de notícias em grandes portais, em que pessoas brancas se sentem no direito de “colocar o preto no lugar dele”? Em contextos políticos, quantas vezes vimos discursos de ódio contra pessoas periféricas, sendo essas, em sua grande maioria, compostas de pessoas pretas? Seria o “em algum lugar do futuro” um real agora, nesse instante, algo quase documental e registrado pelo filme? 

Com essa proposta, o roteiro de Medida Provisória vai se desenrolando ao mostrar diversos contextos: André, o advogado preto, interpretado pelo ator Alfred Enoch, Capitu, a médica, interpretada pela Taís Araújo, André, o jornalista blogueiro, interpretado pelo Seu Jorge e ainda seu relacionamento inter-racial com a personagem Sarah, interpretada pela Mariana Xavier. Só com esses principais personagens nós temos diversos discursos a serem analisados como a ascensão social da comunidade preta, os espaços de poderes ocupados pelos pretos, influência em meios de comunicação e a criticidade sobre os discursos impostos pelos brancos nesses meios e também as relações amorosas entre pretos e brancos, fato polêmico que discute racialidades em esferas conjugais, também conhecido como palmitagem. 

Para trazer um temperinho especial que, claro, não podem faltar, mas que que amargam o olhar e os ouvidos, temos as antagonistas Dona Izildinha (interpretada pela Renata Sorrah) e Isabel (interpretada por Adriana Esteves), trazendo todos os horrores de seus preconceitos e visões de mundo, desde o atiramento de um berimbau para trás em uma ocupação de um espaço para o projeto “Resgate-se” até às denúncias de entregas de pretos para serem “imigrados” para a África, cobrindo-se de discursos em torno do “eu já tive empregada preta” ou “já sofri racismo por conta do meu cabelo”.

Há diversas críticas entrelaçadas, seja nos momentos de humor e descontração ou nos diálogos intensos entre os personagens que, ao decidirem ficar no Brasil, são presos e forçados a saírem do país por policiais com seus corpos 100% cobertos, incluindo seus rostos tampados por um pano branco. Neste ato há uma incrível e necessária leitura semiótica sobre a atuação de policiais negros e que, sem essa força, o plano da Medida Provisória 1888, promulgada em 13 de maio (mesma data em que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea) não teria resultados satisfatórios. Ainda há uma forte crítica sobre o comportamento do brasileiro em “aceitar” o que é ofertado pelo poder público sem senso crítico, sendo evidenciado um recorte triste e de forma escancarada ao reportarem em um noticiário, mostrando os novos imigrantes chegando à África, com o discurso de que o governo local dará um auxílio inicial, reforçando os estereótipos de que o povo brasileiro só gosta de “usufruir” de verbas públicas para sua sobrevivência.

Entre tantos contextos, que envolvem humor, romance, drama e aventura, Medida Provisória traz importantes pontos de vistas sobre cultura: a diversidade cultural que atravessa a comunidade negra, os espaços da branquitude e suas perspectivas de um mundo higienizado e tranquilo para suas vivências entre si, as resistências e os silenciamentos de mulheres pretas em suas diversas mulheridades em contextos pessoais e sociais e que, perante à sociedade, suas forças podem desestruturar quaisquer poderes impostos tanto por homens pretos quanto pela sociedade branca. Além disso, há uma forte crítica aos meios digitais que precisam repensar seus posicionamentos e até mesmo sua força no mundo real, seja pelos perfis “sincerões” que se dispõem a escrever como se não houvessem consequências ou pelos milhões de views de um vídeo acidental que não muda o contexto real em prol dos que mais necessitam de ajuda naquele momento.

Medida Provisória traz também perspectivas essenciais sobre Afrofuturismo, discutindo não somente a idealização de onde deveríamos estar no futuro, mas sim uma crítica de como nos vemos no presente: seja no dia a dia respeitando as diferentes facetas da população preta em um território continental, nos quilombos que formam e que cada um precisa se (re)pensar não somente para si mas também pelo outro para garantir sua sobrevivência, mesmo que sejam em locais considerados esquecidos, enterrados com suas atividades culturais (curiosamente o filme aborda que, em um determinado momento, o Carnaval foi proibido no país), seja pelos pouquíssimos brancos aliados, dispostos a se arriscarem e abrirem mão de suas branquitudes para lutar em prol da sobrevivência do preto/negro, e que o significado de negritude e pretitude não se diluam e tão pouco se esvaziem em termos como “não melaninados” e “melanina acentuada”, como mostra no filme, trazendo sensações de desumanização de uma população que sustenta as bases e pilares de uma nação que, infelizmente, ainda é apossada apenas por pessoas consideradas brancas.

Medida Provisória é uma obra indispensável para compreendermos as relações que se instituem diariamente com o Racismo, sobre as diferentes vivências de um país que embaça, constantemente, as questões raciais para que a população não compreenda que a comunidade negra é majoritariamente a maior em um país tão vasto culturalmente. É o filme que traz toda uma abordagem necessária não somente sobre a luta antirracista, mas também a forma que são criadas as relações com outras etnias em prol do amor e coletivismo por suas sobrevivências. É um sacode dos bons, uma forma de sairmos da zona de conforto de nossas vivências e experiências e olharmos para os diversos atravessamentos dos nossos, entender que aquilombar e fortalecer pretos/negros é necessário para que nossas humanidades sejam respeitadas e preservadas, independentemente de quem for.

Um filme que sobreviveu às mais variadas tentativas de boicote de um desgoverno que faz questão de ressaltar, a todo momento, que a população preta não faz parte de seus projetos de políticas públicas e, consequentemente, tenta apagar a memória de uma cultura que atravessa centenas de anos de resistência em um país injusto e perigoso com seus brasileiros pretos/negros. Mas é uma obra que precisa sim ser reconhecida não somente com os maiores e melhores prêmios da sétima arte, mas também entrar pelas escolas em disciplinas como História, Geografia, Filosofia e Sociologia, em discussões acadêmicas em torno do ser humano, suas subjetividades e discursividades, as imagens construídas ao redor do indivíduo e seus atravessamentos culturais, além das conversas de bar, restaurante, pós peladas de futebol, associações comunitárias, nas filas de supermercado e por ai vai. 

Enfim, Medida Provisória é uma obra onde cinco estrelas, pelo menos no meu ponto de vista, ainda é pouco. E que Lázaro Ramos, de alguma forma, compreenda que ele rompeu muitos paradigmas não somente ao produzir um filme com a maioria do elenco e produção por detrás das câmeras com pretos/negros: reforçou que precisamos estar em todos os lugares e eu estou aqui, de alguma forma, retomando o meu lugar não como crítico de cinema, mas sim como um preto, regado de privilégios, que posso fortalecer ainda mais o cinema brasileiro preto não somente denunciando a falta do cartaz de divulgação em sala de cinema, mas também trazendo meus pontos de vista e minha voz que, de certa forma, enxerga sentido nesse espaço para falar de nós não somente para os outros, mas também para e por nós!

Medida Provisória

 

Ano: 2022
Direção: Lázaro Ramos
Roteiro: Lusa Silvestre, Lazaro Ramos
Elenco principal: Alfred Enoch, Taís Araújo, Seu Jorge, Adriana Esteves, Renata Sorrah, Mariana Xavier, Emicida
Gênero: ​Drama
Nacionalidade: Brasil

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