“Quando eu penso na fazenda, penso em lama”, narra Laura McAllan (Carey Mulligan) em Mudbound: Lágrimas sobre o Mississipi (Mudbound). O filme, dirigido por Dee Rees, mergulha o espectador em um mundo maculado pelas mais diversas formas de sujeira, para retratar a segregação e o racismo no sul dos Estados Unidos, na época da Segunda Guerra Mundial.

O longa fala sobre duas famílias: uma branca; a outra, negra. O sulista branco Henry McAllan (Jason Clarke) é casado com Laura e compra uma fazenda, onde vai morar com a esposa, as filhas e seu pai (Jonathan Banks), para tentar a sorte plantando algodão. Já seu irmão mais novo, Jamie (Garrett Hedlund), acaba se tornando piloto de aviões durante a guerra.

Na família negra, que arrenda um pedaço de terra na fazenda dos McAllan, estão Florence (Mary J. Blige) e Hap (Rob Morgan), com seus filhos. O mais velho, Ronsel (Jason Mitchell), também vai para a guerra. As histórias se entrelaçam quando Ronsel e Jamie retornam ao Mississipi, ambos abalados pelo serviço militar, e estabelecem uma inusitada amizade.

Para entender o contexto no qual esses personagens estão inseridos, é necessário conhecer um pouco sobre a história da segregação racial norte-americana. Nos anos 1940, diversas proibições ainda existiam para coibir a participação dos negros na sociedade e o Ku Klux Klan atuava firme e forte. Especialmente no sul do país, mais conservador, o pensamento era de que os afrodescendentes eram inferiores e não mereciam os mesmos direitos que os brancos.

Nessa realidade, o jovem Ronsel se depara com um sentimento de decepção com relação à pátria pela qual arriscou a vida. “Eu fui lutar pelo meu país e volto para ver que ele não mudou nada”, lamenta. Na Europa, vestindo o uniforme de soldado, ele era visto como um libertador; no Mississipi, é apenas mais um negro puxando um arado.

Esse conflito entre o antes e o depois da guerra, além do trauma compartilhado, é o que aproxima Ronsel de Jamie. Homem branco e sobrevivente, o piloto Jamie é visto como um herói, mas se culpa pela morte dos amigos e sofre para se reajustar à vida rural, porque não consegue apagar da mente a experiência devastadora pela qual passou. Para lidar com isso, acaba caindo no alcoolismo.

É a amizade entre os dois, no entanto, que culmina em um ato covarde da comunidade local contra Ronsel. A violência, no filme, é retratada de maneira impactante, porém nunca gratuita. A diretora e o corroteirista Virgil Williams, tendo como base o livro Mudbound, de Hillary Jordan, souberam dosar os ataques racistas e desenvolver os personagens de modo a fugir das caricaturas. Além disso, as atuações são extraordinárias e repletas de sutilezas, em especial as de Jason Mitchell e Mary J. Blige.

O recurso de voz off é usado em alguns momentos, para diversos dos personagens. Isso acaba prejudicando um pouco a narrativa, já que soa quase como uma invasão aos pensamentos mais íntimos desses personagens, algo que as poderosas interpretações já dariam conta de mostrar. Em sua maior parte, no entanto, o longa consegue escapar do melodrama e traçar um retrato honesto daquela época.

O destaque fica para a fotografia belíssima de Rachel Morrison, que recentemente se tornou a primeira mulher a ser indicada para o prêmio de melhor cinematografia da American Society of Cinematographers (ASC). As paisagens rurais do Mississipi ganham tons terrosos, contrastados, e a iluminação noturna com velas é simplesmente perfeita.

A maneira como a população negra era discriminada, infelizmente, é retratada de maneira muito fiel ao que de fato ocorreu na região. Dee Rees soube compreender o impacto disso na realidade atual – em que o conservadorismo ressurge nos Estados Unidos – e o resultado é um filme tocante, que vale a pena ser visto. Assim como Ronsel teve sua visão de mundo alterada pelo contato com outra cultura, Mudbound: Lágrimas sobre o Mississipi é uma prova de que, uma vez que a mente se abre, é impossível voltar a se fechar.