De que modo as algemas da tradição silenciam um corpo que há muito já não se reconhece?
My Happy Family é um filme original Netflix e teve a sua estreia no Sundance Film Festival levando dois prêmios: TIFF Awards para melhor interpretação e Transilvania Trophy.
Manana, uma professora solitária e infeliz vive na Geórgia, país localizado na Europa Oriental. Mãe de dois filhos, mora com o seu marido na casa de seus pais. Tendo a vida atrelada a todos os membros de sua família, a mulher decide sair de sua casa ao completar 52 anos.
Com a câmera perseguindo a nuca da personagem, a primeira sequência revela Manana em um apartamento. É nesse pequeno lugar que a mulher terá que conviver com o estigma de ter abandonado a sua família.
Ao longo da narrativa, Manana é colocada em situações complexas e o seu olhar soturno convence o espectador da melancolia na qual vive. A supressão do ar está sempre presente nos pulmões da personagem e mesmo tendo deixado a família, ainda precisa nutrir os vínculos afetivos legados a uma mulher, porém, não por escolha, e sim, por convenção.
De uma maneira peculiar, temos uma protagonista que por incrível que pareça está sempre sendo colocada na posição de coadjuvante. Ora, o que o filme nos revela, em inúmeras sequências – como na cena espetacular em que um homem obriga Manana a tocar violão e cantar – é a ausência de autoridade que a mulher exerce em uma sociedade patriarcal. Todos comentam, apontam, subjugam, exploram Manana, ao passo que é quase inexistente uma cena em que a protagonista parece dominar a situação.
Porém, podemos olhar para a personagem apenas como uma vítima das estruturais sociais vigentes, ou, de outra forma, se trocarmos as lentes é possível perceber como Manana é um sujeito ativo que, por mais imerso que esteja em uma tradição enrijecida, busca brechas para driblar e constituir um núcleo duro onde as práticas libertadoras emergem, nesse caso, em seu apartamento.
Nesse sentido, o filme explora as relações de poder não só entre uma relação heteronormativa monogâmica, mas entre membros familiares de diferentes gerações; irmãos, tios, filhos e pais insistem em ajustar Manana a um papel social pré-definido. A narrativa se dobra e desdobra na tirania cotidiana em que vive a personagem ao ser colocada em diversas situações fantasiosas em que encarna a personalidade (para os outros) da mulher problemática, traída, deprimida, ingrata etc.
De um modo geral, a narrativa joga com as diversas dimensões de ser mulher em uma cultura estritamente dominada pelo masculino, ao mesmo tempo em que explora – libertando o filme de um clichê recorrente –, a determinação de uma mulher, sem romantizá-la – com certeza isso deve-se ao fato do filme ter sido dirigido e escrito por uma mulher – e capaz de tomar as rédeas de sua própria vida.