Por Ana Carolina Diederichsen
O filme conta uma história de origem bíblica que já se tornou lendária. Fala de um homem que, contrariando todos a seu redor, decide construir uma imensa arca para abrigar um casal de cada animal da terra, protegendo-os da extinção. Tudo isso, baseando-se na interpretação de uma visão confusa sob a forma de sonho, em que o Criador informa que a terra será tomada por um gigantesco dilúvio, para limpá-la das mazelas da humanidade.
As representações do sobrenatural são de muito bom gosto. Noé não é um filme tradicionalmente religioso e dogmatizado como as produções baseadas em histórias religiosas tendem a ser, apesar de evidente luta do bem contra o mal. O lado espiritual determina o tom do filme, mas ele não reverencia uma religião específica, apesar de se pautar inteiramente na história da criação propagada pelo antigo testamento.
O longa aborda principalmente o lado psicológico do protagonista. Seus questionamentos sobre sua própria sanidade e sua entrega absoluta à uma tarefa que lhe foi passada de maneira nebulosa. Mostra o lado muito difícil de quem foi escolhido para ser, se não o responsável imediato, no mínimo o cúmplice da aniquilação da humanidade. Uma cena ilustra bem esse fato. Quando estão dentro da arca, é possível ouvir os gritos de socorro de todos que se afogam (em uma cena que remete às cruéis visões dantescas do Inferno). Gritos ensurdecedores que perturbariam até o mais inescrupuloso dos homens dominam o ambiente. Noé, ouvindo todos os pedidos de socorro, ainda se mantém firme no propósito de seguir as ordens do Criador, mas isso o torna tão amargurado que rouba sua sanidade.
Um dos questionamentos que corroboram para o estado delicado de Noé é a consciência de sua própria humanidade. Se ele e sua família são também humanos, então por essência carregam o mal em sua natureza e, portanto, devem também ser aniquilados. Ele interpreta a vontade do Criador como uma missão que fatalmente levará à sua própria morte e de sua amada família, tornando esse bardo insuportável. O filme é repleto de referências, que vão desde 2001 – Uma Odisseia no Espaço, passando por Fantasia da Disney, e chegando em A Árvore da Vida, de Malick, quando fala da criação, só que aqui num ritmo muito mais dinâmico, com um visual mais agradável e explicativo do que o anterior.
Outra referência (pode ser só uma viagem minha) foi ao painel “Guernica”, de Pablo Picasso, que retrata todo o terror da Guerra Civil Espanhola. Um dos guardiões do filme se assemelha muito a um dos personagens distorcidos pelo terror na obra prima do espanhol. Repleto de atuações consistentes, o time o feminino merece destaque. Jennifer Connelly está muito bem, apesar de ainda achar que ela tem uma beleza delicada demais para uma época tão remota e bruta, em algumas cenas a personagem realmente salta aos olhos e domina. O mesmo acontece com a jovem Emma Watson. No geral, o menos consistente é o divo mór, Sir Anthony Hopkins (mas isso pode ter a ver com o fato de ele estar muito parecido com o Mestre dos Magos, da “Caverna do Dragão”, desenho famoso nos anos 1980).
Para os saudosistas, temos um reencontro interessante. Russell Crowe e Jennifer Connelly revivem o casal romântico formado em Uma Mente Brilhante. O visual de Noé é impactante, um pouco mais ortodoxo do que o habitual para o diretor, mas ainda assim muito mais elaborado do que o cinema comercial usualmente apresenta. A tecnologia 3D não foi bem aproveitada, mas a tela grande do IMAX vale a pena. Aronofsky conseguiu fazer um filme diferenciado, com toques de ousadia e de fácil aceitação inclusive ao grande público. Repetindo a dobradinha de A Fonte da Vida, Darren Aronofsky e Ari Handel assinam um roteiro elaborado de tal maneira e conduzido com delicadeza ao abordar temas dogmáticos, que o longa tem ainda mais um mérito.
Conseguiu conciliar algo difícil por não ser ofensivo aos religiosos e, ainda assim, despertar interesse no espectador mais cético. A história faz sentido mesmo que desconectada da religiosidade e não ataca os dogmas religiosos. Um blockbuster com leves doses de autoral, numa mistura interessante. Pode ser um bom divertimento para quem só busca se distrair, e pode também levantar diversos questionamentos filosóficos para que quiser se dedicar um pouquinho mais a essa bela história.
Ano: 2014
Diretor: Darren Aronofsky
Roteiro: Darren Aronofsky e Ari Handel
Elenco Principal: Russell Crowe, Jennifer Connelly, Anthony Hopkins, Emma Watson
Gênero: Drama/Aventura/Ação
Nacionalidade: EUA
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