Assistir um filme de Álex de la Iglesia é uma experiência interessante, impactante e característica. No início, personagens verborrágicos são inseridos em situações inusitadas, em um tom quase fantasioso, mas sem quebrar a verossimilhança, provocando o riso no espectador. Contudo, gradativamente a narrativa vai se transformando, dando mais espaço ao horror com uma violência gráfica excessiva. Para os fás dessa cinematografia, O Bar se insere nela com folga, sendo um ótimo exemplo de obra autoral realizada no âmbito do cinema industrial.
Na trama, oito pessoas com personalidades fortes e distintas ficam aprisionadas dentro de um bar em Madrid, após dois indivíduos serem baleadas no lado de fora. Quem sair será assassinado. O medo vai corroendo os personagens e expondo paranoias e novas camadas obscuras de suas personalidades. O filme começa com um engenhoso plano-sequência, apresentando, no lado de fora do bar, os personagens que em breve irão entrar no local, os mostrando de forma ordinária antes da crise. No entanto, a escolha pelo plano-sequência se restringe a essa cena. Em seguida, a montagem trabalha com muitos cortes, acompanhando os personagens em destaque. A escolha mantém um ritmo frenético que pode prender a atenção do espectador que não está acostumado com esse tipo de proposta. Ainda assim, poderia ter sido interessante trabalhar com menos cortes, respeitando mais a unidade do espaço e desenvolvendo uma movimentação de atores ricamente coreografada – tendo como referência o plano-sequência do interrogatório de Sanches em A Marca da Maldade (1958), e não tanto a famosa cena inicial desta obra-prima noir. Mas Álex de la Iglesia não é tão dado a estilísticas bazinianas e seria estranho o diretor apostar nesse tipo de composição.
Apesar do título, podemos identificar que o filme se desenrola em mais dois espaços inferiores: começa no bar, depois passa para um sótão e o desfecho ocorre no esgoto. A cada espaço, menos personagens continuam em cena. A cada espaço, mais os sobreviventes conhecem uma espécie de inferno. Inferno, aliás, não é uma palavra gratuita, pois um dos personagens mais fascinantes é Israel (Jaime Ordóñez), um mendigo articulado que adora citar passagens bíblicas. Ele é o ser mais iglesiano, como uma versão terrestre de anjo do apocalipse, se enquadrando naquele tipo de personagem irracional que, por meio de um discurso alegórico, parece ser o que mais tem capacidade de explicar o que realmente está acontecendo em sua volta.
Os personagens correspondem a certa estereotipia, como o homem da tecnologia sem jeito com as mulheres, ou o ex-policial velho e beberrão. Entretanto, essas características não são jogadas na cara do espectador logo de primeira, mas transmitidas por meio de um desenvolvimento de personagem gradativo, que trabalha, sistematicamente, com diálogos e gestos corporais.
De certa forma, esse jogo entre aparência e realidade em poucos espaços já foi trabalho, das formas mais diversas, no cinema. Podemos lembrar O Anjo Exterminador (1962), de Luis Buñuel, em que burgueses não conseguem deixar uma mansão após um jantar luxuoso, até às várias versões de Jogos Mortais. Todavia, se na obra prima de Buñel não há uma explicação clara para a imobilidade dos personagens, em O Bar, como comentou o próprio diretor, há um motivo claro para eles não saírem do local: o medo.
O sentimento serve como um gatilho para aflorar ou despertar traços de personalidade escondidos. Nesse sentido, vale denotar como O Bar trabalha com uma espécie de fortuita quebra de expectativa. Ou seja, apesar das aparências, definitivamente ele não é mais um Jogos mortais. Ainda que a trama se baseie em vários personagens lutando pela sobrevivência em um espaço limitado, o filme não é somente sobre isso. Depois de um certo momento, o desfecho se torna um detalhe. O real motivo para toda aquela situação nunca fica claro. E apesar do incomodo, existem outros complexos questionamentos que estes personagens retóricos despertam, e que podem tomar conta do espectador. Listo alguns: poderíamos matar para preservar a nossa vida? Acomodados em um cotidiano seguro, temos noção que a qualquer momento tudo pode acabar? Diante dessa noção de mortalidade, o que de fato significa viver? O que vale a pena?
Todos esses questionamentos, vale ressaltar, são desenvolvidos em um cinema que tem plena noção de ritmo e apelo visual. Citei Bruñel em uma comparação de perspectivas e premissas, mas no filme plenamente dito, Iglesias se aproxima claramente de John Carpenter. O diretor espanhol se tornou um destaque no cinema de horror contemporâneo justamente por misturar, sem medo, referências e abordagens aparentemente distantes. No entanto, mais do que uma miscelânea de referências, o cineasta consegue ir além e fazer uma obra muito própria, que encontra diálogos, inclusive, em sua própria cinematografia.
Em O Dia da Besta (1995), obra-prima de Álex de la Iglesias, o final ocorre com um padre e um apresentador charlatão vivendo como mendigos, após acreditarem que acabaram com a ressurreição da besta, quando, na verdade, eles desmantelaram uma gangue que estava assassinando mendigos em Madri. Apesar disso, ambos decidem viver na ilusão e estão felizes com essa decisão, em um final quase otimista. Israel de O Bar é quase uma extensão desses dois personagens. No entanto, a visão e realidade que ele passa é muito mais amarga, pois não encontra conforto e paz no conhecimento bíblico que possui, se refugiando na bebida e no atrito com as pessoas em volta.
Iglesias já trabalhou com narrativas concentradas em poucos espaços e com vários personagens. Em A Comunidade (2000), uma agente imobiliária encontra milhões de pesetas no apartamento de um condomínio. Contudo, ela não consegue sair do local porque os outros moradores começam a perseguir, já que estão há anos procurando esse dinheiro. No filme, os personagens estão sufocados em angustias internas e projetam nesse dinheiro a esperança de que dias melhores virão. A espera é tão longa, que todos se conformam com o fato de serem ladrões e assassinos.
O Bar fornece outra abordagem. Muitos personagens estão se descobrindo como transgressores da ordem ao se confrontarem com aquela situação limite. A esperança de uma solução final também os transformam em possíveis assassinos, porém esse sentimento é muito repentino. O que esgota aqueles indivíduos é justamente a terrível sensação de tempo perdido. Contudo, julgá-los por um suposto desperdício também pode ser algo condenável. É o sentimento que nos assola ao ouvirmos uma das frases mais impactantes do filme, quando uma personagem é criticada por sua intensa resignação e pondera: “Eu viro as costas para as pessoas, mas não porque não me importo, é porque tenho vergonha de ser vista.”
Ps: No Brasil, a distribuidora do filme é a Netflix.