Esta não é a primeira vez que vemos O Beijo no Asfalto nos cinemas. Adaptado a partir da obra homônima do genial Nelson Rodrigues, o texto foi encomendado para o teatro e trabalhado duas outras vezes na telona, uma delas sob a batuta de Bruno Barreto. Contudo, é certo dizer que a nova versão da história que chega agora ao circuito é de longe a mais criativa.

Em seu primeiro trabalho como diretor, Murilo Benício comanda o longa que começa com o atropelamento de de um pedestre em plena Praça da Bandeira, na cidade do Rio de Janeiro. Antes de morrer o indivíduo pede um beijo nos lábios a Arandir (Lázaro Ramos), um completo desconhecido que o socorre. Este incidente é então transformado em escândalo pelo jornalista Amado Ribeiro (Otávio Muller) e o delegado Cunha (Augusto Madeira). Vítima de um grande mal-entendido, Arandir se torna alvo não só do preconceito popular mas também de uma investigação policial que o acusa de assassinato. Como consequência o relacionamento do bancário com sua esposa Selminha (Débora Falabella), sua cunhada Dália (Luiza Tiso) e o sogro Aprígio (Stênio Garcia), passa por uma turbulenta mudança.

Mantendo total fidelidade à obra do dramaturgo a película exibe uma verdadeira tragédia de costumes carioca. Graças ao visionário Nelson, o texto se mantém atual mesmo após 60 anos de sua criação e tece duras críticas à sociedade brasileira como um todo, por seus hábitos corruptos e hipócritas.  O beijo no asfalto foi o incidente incitante que serviu para trazer à tona uma série de conflitos que estavam ocultos sob a pele dos personagens. Diante de tanta sujeira, o toque de lábios choca por demonstrar compaixão genuína. As pessoas envolvidas na história repudiam o gesto pois tal comunhão lhes é estranha e quebra as barreiras que construíram ao redor de si mesmos. Esses mundos próprios e solitários transparecem na forma dos diálogos rápidos com frases curtas que muito falam mas pouco comunicam.

As figuras dramáticas são construídas sob igual tom de ambiguidade. Apesar de fingirem defender a moral e os bons costumes, os “cidadãos de bem” apresentados no filme são dominados por desejos inconfessos. Arandir, mesmo sendo bom sujeito, é fraco e não tem forças para enfrentar o desafio que lhe é imposto. Selminha se mostra vítima da situação e ainda que comece defendendo o marido aos poucos vira refém do que lhe contam, se mostrando crédula e frágil. Ao mesmo tempo, sua relação com Dália se acirra e as duas mostram suas verdadeiras caras, escondidas por máscaras de boas garotas. Para completar temos Aprígio, a personificação da hipocrisia que possui várias falhas paternas típicas da obra de Rodrigues.

Para dar vida a esses personagens complexos a produção conta com um elenco competente. À medida em que o longa avança as atuações causam mais impacto e reflexão, tendo como ponto de virada a cena conduzida por Fernanda Montenegro. A atriz, que já foi a Selminha no teatro aqui é Dona Matilde, a vizinha fofoqueira. Quando ela apresenta o jornal à devotada esposa de Arandir temos a nossa frente um momento de rara beleza pois nele vemos a atriz desaparecer dentro do papel. Fernanda eleva a qualidade da película para um novo patamar e a partir daí os demais atores entregam interpretações inspiradas.

Os elementos técnicos também colaboram para o sucesso de O Beijo no Asfalto, pois juntos compõem uma narrativa coesa. A montagem, diferindo do tradicional, conta sua história mesclando cenas do processo de preparação dos atores com momentos narrativos convencionais. A trama faz uso ainda de cartelas de texto para indicar o fim dos atos cênicos e exibe os bastidores das gravações, estas realizadas em um teatro. A soma dos fatores dá ao público a sensação de estar assistindo ao mesmo tempo o making off e a apresentação de uma peça.

Tal efeito enaltece a obra base e levanta uma miríade de temas como homossexualidade, influência da mídia na opinião pública, falta de ética no jornalismo, corrupção na polícia e o poder de convencimento das autoridades. A fotografia em preto e branco aumenta os contrastes vividos pelos personagens e destaca a contraposição de suas angústias corrosivas. Por fim, o título presta uma grande homenagem não só à profissão dos atores como ao teatro em si, ao apresentar longas cenas sem cortes típicas do palco.

Com um subtexto pungente que critica o moralismo dominante e a hipocrisia dos costumes na sociedade, O Beijo no Asfalto mostra também a competência de Murilo em sua estreia atrás das câmeras. O texto de Nelson Rodrigues permanece intacto na tela e o longa reproduz com maestria as questões atemporais trabalhadas em sua obra, incluindo o surpreendente e controverso final. Se as peças do dramaturgo buscam redenção através da culpa, o novo filme não demonstra aflições ao transpor elementos do teatro para o cinema. Este não foi o primeiro beijo e não foi a primeira vez, mas de certo é o mais inovador. Que tenhamos mais adaptações como essa.

O Beijo no Asfalto

 

Ano: 2018
Direção: Murilo Benício
Roteiro: Murilo Benício
Elenco principal: Lázaro Ramos, Débora Falabella, Stênio Garcia, Luiza Tiso, Augusto Madeira, Otávio Muller, Fernanda Montenegro
Gênero: ​Drama
Nacionalidade: Brasil

Avaliação Geral: 3,5