Uma série de elementos caracteriza um povo: seus costumes, seu idioma, sua história, sua cultura, o território que ocupam, etc. A esse conjunto de atributos, convencionou-se chamar de Identidade Nacional. Esse patrimônio imaterial de uma nação é construído aos poucos e muda de acordo com os movimentos culturais e geopolíticos de cada época. Já há algum tempo, entretanto, os principais países da União Europeia temem a perda de tal identidade devido o enorme fluxo de imigrantes e refugiados que têm recebido. Ao longo dos anos, um êxodo de pessoas afluiu para o velho continente a fim de fugir das guerras e governos ditatoriais que assolam a África e o Oriente Médio.

Entre as nações que acirraram os critérios para o processo de imigração está a França. Berço dos ideais racionais e do pensamento livre, a terra francófona está às voltas com uma onda de xenofobia e preconceito. De um lado estão os estrangeiros, que moram no país há alguns anos e tiveram filhos em solo francês. Eles reclamam das oportunidades de trabalho oferecidas, da exclusão social e das humilhações a que são submetidos. Já os franceses sentem que sua terra foi invadida e receiam o extravio de sua cultura. Eles sofrem com a inflação e agora precisam competir os imigrantes por postos de trabalho.

É sob esse contexto espinhoso que se desenrolam os fatos de O Orgulho, novo filme do diretor Yvan Attal. No longa, acompanhamos a trajetória de Neïla Salah (Camélia Jordana), uma descendente de argelinos, que vive nos subúrbios de Paris. Sempre dedicada, a jovem sonha em ser advogada e, com muito esforço, consegue uma vaga na renomada Universidade Pantheon-Assas. Porém, ao chegar atrasada no primeiro dia de aula, Neïla é vítima de um discurso racista concedido pelo professor Pierre Mazard (Daniel Auteuil). Após críticas de diversos alunos da faculdade, o mestre é obrigado a se desculpar para manter o emprego e passa a treinar a estudante para um concurso de oratória.

Com um roteiro que corre dentro do esperado, o longa ganha mérito justamente no diálogo sobre os problemas sociais. O maior deles é o racismo, que se mostra presente em todas as esferas da sociedade. Neïla é segregada não só pelo professor, mas também por outros alunos e funcionários da faculdade, alguns deles representantes de minorias raciais. De maneira consciente, a produção também aborda o gap existente na educação proporcionada aos filhos de imigrantes. Os amigos da estudante de direito, incluindo seu namorado Mounir (Yasin Houicha), se consideram não-franceses. Mesmo tendo nascido ali, eles desprezam os elementos culturais do país e se recusam a passar por situações vexatórias para conseguirem um ensino superior. A saída são os empregos “fáceis” como motorista de Uber e caixa de supermercado.

Diante disso, Neïla se mostra uma exceção em ambos os mundos que habita. Na faculdade é sempre a estranha garota filha de argelinos. No subúrbio onde mora é apelidada de “perfeita francesinha” por frequentar uma universidade tradicional e corrigir a gramática dos colegas. Essa permanente dicotomia torna a personagem interessante e profunda. Apesar de personificar o conhecido arquétipo da moça pobre que vai para a cidade e constrói uma reputação para si mesma, Neïla é carismática e cria uma identificação imediata com o público. Seja por acharmos injusto as situações em que a colocam, seja por nos assemelharmos a ela – como quando ela ensaia respostas perfeitas para uma briga que já passou – nos vemos cada vez mais envolvidos com sua história. Como esperado, eventualmente esses dois universos diferentes se chocam e obrigam nossa protagonista a tomar decisões drásticas. Essas não apenas reforçam a imagem que tínhamos da garota, como também concedem um tom melodramático que acha seu lugar no decorrer da trama.

Numa posição diametralmente oposta à da jovem está Pierre Mazard. O professor é caracterizado como um homem racional e convicto de suas opiniões, mesmo que estas sejam cínicas e racistas. Sem papas na língua, ele provoca discussões até mesmo com desconhecidos, sempre disposto a provar um argumento e sair vitorioso. Em uma análise arquetípica, Pierre concentra em si dois papeis: ele é o antagonista, que expõe Neïla e causa a ira do público, mas ao mesmo tempo é o mentor, que guia a universitária pelos caminhos do saber. Descrito como um homem das palavras, o mestre passa a respeitar a aluna apenas quando ela consegue dominar os argumentos da oratória.

Graças a essa relação entre os dois, e também à cumplicidade entre os atores, o filme adquire um tom leve e de humor pungente. Se no fundo a história não passa do clichê “velho professor transmite sua experiência para jovem pupilo”, os elementos narrativos concedem a profundidade necessária para tornar a premissa interessante. Entre eles está a metáfora bastante apropriada sobre a voz. Logo no início, vemos Mazard humilhar Neïla em um auditório cheio de estudantes. Ele fala ao microfone e projeta sua voz de maneira a preencher o ambiente. Já ela articula baixo e não tem pleno domínio de suas emoções. Aos poucos, a jovem vai revertendo a situação e conquista seu lugar de fala. O discurso se torna para ela uma ferramenta poderosa em sua carreira como advogada. Com ele, Neïla não só ataca aqueles que se colocam em seu caminho, mas também defende os que precisam, até mesmo Pierre num momento de necessidade.

Mas até chegar lá, Salah passa por um longo caminho. O processo de aprendizado é repleto de debates e conflitos, que ocasionam mudanças gradativas em sua rotina com o professor. A princípio sempre existe algum elemento que os separa e a ideia de proximidade incomoda a ambos. À medida em que eles criam uma relação de cumplicidade, as barreiras impostas vão caindo e a convivência se torna mais amigável. Esse efeito pode ser visto de maneira clara no figurino de Naïla. Seguindo as instruções de Mazard, ela passa a se vestir mais seriamente e, de forma curiosa, perde as várias camadas de roupas. As vestimentas serviam a dois propósitos: a protegiam do frio e afastavam as pessoas. Ao despir-se delas, a jovem abre as portas para viver novas experiências.

É interessante notar ainda como o diretor consegue subverter algumas regras da sétima arte. Convencionou-se que, ao vermos uma pessoa em pé e outra sentada, a autoridade pertence à primeira delas. Ao mesmo tempo, se um enquadramento deixa um personagem mais alto do que outro, quem comanda a situação e o que está no nível superior. Curiosamente, Yvan Attal subverte estes conceitos em detrimento da fala. Na cena inicial, mesmo Neïla estando num patamar superior ao professor, ele domina o que acontece, pois sua voz é amplificada no microfone. Outro exemplo é a cena em que a jovem conversa com Mounir. Mesmo estando vários níveis abaixo dele numa escadaria, Salah o dobra por meio da retórica e faz com que o garoto confesse seu amor por ela.

Características como esta tornam O Orgulho uma escolha de muito bom gosto. Ainda que possua uma trama conhecida, a película se apresenta de forma elegante e concede voz àqueles a quem esta foi confiscada. Por abordar temas tão polêmicos e, ao mesmo tempo tão necessários, o filme incentiva o diálogo sobre preconceito, conflito de gerações e o efeito emburrecedor das redes sociais. Além de tudo isso, a produção nos faz refletir sobre o real significado de identidade nacional. A obra nos mostra que a essência de um povo se revela não por movimentos intransigentes, mas sim pela vida orgânica das pessoas, que acaba absorvendo ou rejeitando algumas influências, sempre buscando o melhor.

O Orgulho

 

Ano: 2017
Direção: Yvan Attal
Roteiro: Yvan Attal, Victor Saint Macary, Yaël Langmann, Noé Debré
Elenco principal: Daniel Auteuil, Camélia Jordana e Yasin Houicha
Gênero: ​Comédia, Drama
Nacionalidade: França

Avaliação Geral: