No cinema reside uma grande potência para se encaminhar os mais diversos gêneros e estilos, podendo com todos os seus principais elementos (direção, fotografia, arte, som…) nos contar de maneiras distintas uma mesma história ou temática. Portanto, é curioso que o tema dos refugiados e seus dramas seja retratado de maneira séria e informacional no documentário Human Flow, mas é possível abordar tal tema com leveza e humor, presentes no finlandês O Outro Lado da Esperança. Filmes com temáticas idênticas, mas totalmente díspares em seus gêneros (e ambos presentes na Mostra Internacional de Cinema desse ano).
Dirigido e escrito por Aki Kaurismäki, a trama reveza entre dois personagens: o fugitivo sírio Khaled (Haji) que procura asilo político na Finlândia, enquanto busca respostas sobre o paradeiro de sua irmã e o comerciante Wisktröm (Kuosmane), que se dedica a jogar pôquer em um clube para comprar um restaurante. Depois de uma série de eventos, o caminho dos dois acaba se cruzando e, assim, passam a auxiliar um ao outro.
Um dos elementos mais funcionais aqui se dá por meio da montagem, que consegue dar a devida atenção e nos fisgar para o que acontecerá com ambos os personagens. Aqui se revela um trabalho muito cuidadoso por ser calmo em desenvolver seus personagens, finalmente culminando no encontro deles, que com uma montagem mais apressada, seria apenas uma coincidência irrealista.
Não apenas exerce muito bem essa função, como também cria um interessante paralelo entre como as chances e oportunidades na vida infelizmente se dão por características pessoais que não deveriam importar. Enquanto Khaled passa por grandes dificuldades para, não só conseguir asilo político, como também sair nas ruas em paz, já que constantemente ele é agredido por um grupo de racistas skinheads que o perseguem durante a trama, do outro lado Wisktröm, com muita facilidade, ganha uma bolada com a qual consegue comprar o restaurante, já com os funcionários inclusos.
Assim, o filme nos revela uma faceta social muito bem articulada, ao apontar como os imigrantes são vistos com ódio e preconceito e para conseguir qualquer tipo de trabalho, passam o dobro de dificuldade do que alguém branco e abastado como Wisktröm.
Mas se todos os pontos que o filme trata parecem ser dramáticos, Kaurismäki subverte a clássica abordagem e usa um peculiar e singular humor para trazer amenidade a narrativa. Não apenas inserindo diálogos divertidos (como quando um personagem explica a razão do seu trabalho com “eu toco ou morro”), como na mise-en-scène dos atores, ao apenas colocá-los em posições curiosas (como a pequena fila que se forma no escritório de Wisktröm) ou na direção de arte, usando de elementos que quase beiram ao surreal (como a janelinha da porta que não tem vidro) para levar ao riso.
Esse alinhamento entre o humor e comentário social se dá em várias camadas, como na recorrente gag do restaurante que a cada momento vira alguma nacionalidade, como a noite japonesa que gera uma série de piadas envolvendo o total desconhecimento dos personagens do que se trata a culinária japonesa, sem necessariamente criar um estereótipo, mas constatando com humor como as culturas ali são totalmente diferentes.
Com isso, O Outro Lado da Esperança também encontra tempo para falar como a globalização e como as culturas passaram a se mesclar entre si, não só pelas mudanças do restaurante, como a trilha sonora que se aproxima muito do blues americano e que embala boa parte do filme, trazendo canções de country também e até mesmo um pôster do Jimi Hendrix em uma parede.
Sabendo criar situações muito engraçadas, como quando Khaled passa um tempo escondido com um cachorro e conta ao outros que conseguiu convertê-lo ao islamismo nesse meio tempo, o filme talvez trate alguns momentos mais críticos de maneira mais aprazível do que deveria, merecendo neles algum peso dramático e trazendo, em boa parte, personagens sempre bondosos e em prontidão para ajudar o protagonista, mas na proposta dada da obra, é aceitável.
Também sendo fundamental para obter a simpatia do espectador, as atuações tanto de Sherwan Haji quanto Sakari Kuosmanen são cruciais para isso. Haji dá para Khaled um tom sempre afável e cordial, que se sustentam pelo pequeno porte físico do ator, e cujas tiradas são sagazes e cômicas, mas também fazendo com que nos importemos com seus dramas pessoais. Já Kuosmanen, com seu olhar gentil e uma certa inaptidão com sua grande altura, também o tornam uma figura divertida e curiosa que foge do típico velho rico e ganancioso.
Dessa maneira, O Outro Lado da Esperança consegue a proeza de levar comentários sociais pertinentes para serem debatidos, mas de maneira divertida com um humor atípico, que resulta numa obra prazerosa e perspicaz.