A cidade de Jackson é a capital do estado americano do Mississipi e, como grande parte do sul dos EUA, possui um abismo social que separa a população branca e negra. Basta olhar no mapa habitacional do lugar: os brancos estão situados nas bordas e os negros no centro. Esse tipo de segregação racial e o histórico racista do lugar geram crimes de ódio amplamente noticiados. Dentro de uma semana, em junho de 2017, o jovem Jeremy Jackson foi decapitado e Phillip Carroll enforcado em uma árvore, ambos negros. Tais atos, aliados à recente morte de Alton Sterling, em Baton Rouge na Luisiana, causaram uma efervescência social e o acirramento entre a população local.

Este cenário conturbado serviu de base para o documentário O que você irá fazer quando o mundo estiver em chamas?, do diretor Roberto Minervini. Ao acompanhar a situação de três grupos diferentes, o filme mostra como a comunidade negra tenta lidar com as persistentes consequências do passado e encontrar seu lugar dentro de um país onde o governante não está ao seu lado.

Por meio do dia a dia das pessoas, o doc apresenta a realidade dos negros nos EUA. Logo no início vemos uma mãe que trabalha o dia inteiro e tem que deixar os filhos sozinhos. Por conta disso, Ronaldo e Titus  14 e 8 anos, respectivamente, passam horas vagando pelas ruas do bairro em busca de alguma diversão. Os jovens se divertem olhando carros em concessionárias e subindo em pilhas de pneus usados, o que denota uma carência de espaços públicos de qualidade. Entretanto, as conversas com a mãe são as mais significativas. Ela lhes ensina a estar em casa antes das luzes da rua se ascenderem à noite, reforça a importância de fazer as tarefas de casa e exorta que eles se mantenham longe de gangues e possíveis crimes. Ronaldo ainda recebe censuras individuais, para que seu comportamento sirva de exemplo para o irmão.

Em seguida vemos a história de Judy, uma mulher que tenta manter aberto um bar no bairro negro. Sofrendo com os altos impostos e certo preconceito dos fiscais brancos, a pequena empresária faz de seu estabelecimento um ponto de encontro para a comunidade local. À noite, o bar é espaço de apresentações musicais intercaladas por debates focados nos recentes crimes contra negros. Além disso, Judy também realiza visitas ocasionais à pontos de consumo de drogas. Ela é uma ex-viciada e chegou a ser presa por se envolver com um traficante. Ao compartilhar histórias pessoais com outros usuários, ela revela os horrores do seu passado, que incluem violência sexual familiar. Por esse viés, o trabalho apresenta o alto índice de abusos sexuais ocorridos na infância e mostra que, para essas pessoas, as drogas surgem como um meio de esquecimento de tais terrores.

A terceira narrativa, e talvez a mais interessante, acompanha um grupo de pessoas do Novo Partido dos Panteras Negras. Além de leituras de textos de resistência racial e debates com novos membros, os Panteras conduzem uma investigação particular sobre as mortes de Jeremy Jackson e Phillip Carroll. Isso porque a polícia local fez vista grossa quanto aos crimes e não apresentou soluções convincentes. O grupo também realiza protestos públicos e visita casas dos bairros negros a fim de conversar com os moradores.

Na miscelânea criada a partir da fusão dessas três realidades o documentário aborda temas duros da vida dos negros americanos. Por meio de falas politizadas ou de debates acalorados vemos personagens afirmarem que, mesmo libertos, os negros continuam em condições análogas a de escravos. Muitos são vistos como cidadãos de segunda categoria e possuem uma total descrença no governo e nas instituições democráticas. Como agravante, as Whitopias (cidades compostas exclusivamente por brancos) têm se proliferado nos EUA e no sul a ameaça da Ku Klux Klan volta a se fazer presente. Nessas condições, os Panteras Negras parecem ser uma das poucas organizações compostas por e para negros. De maneira anacrônica, o país vive hoje uma situação semelhante à dos anos 1970, tão bem dramatizada em O Infiltrado da Klan, novo título de Spike Lee.

Tecnicamente, o documentário se mostra diferente de algumas formas tradicionais que definem o gênero. Aqui não temos uma pessoa sentada falando diretamente para a câmera. Ao contrário, esta acompanha cada grupo de pessoas sem nunca questionar ou interferir na ação. Os temas debatidos são levantados pelos próprios personagens e tragos à tona de maneira natural e realista. Por conta disso, a produção possui um excesso de falas, já que as pessoas conversam o tempo inteiro umas com as outras. Os poucos momentos de silêncio são exibidos em planos longos e lentos. Como um todo, o documentário possui um ritmo cadenciado, sem grandes picos de ação, exceto em uma parte da narrativa dos Panteras Negras. 

Graças à ampla bagagem cultural das personas em foco, O que você irá fazer quando o mundo estiver em chamas? levanta nomes de personagens negros que tiveram grande importância na história. Um exemplo é Harriet Turbman, uma abolicionista, humanitária e espião do Exército dos Estados Unidos durante a Guerra Civil Americana. Ao mesmo tempo, o filme tece críticas ao texto racista de Wiliam Lynch, que ensinava aos senhores coloniais a domarem seus escravos.

Em tempos de comoção social nas terras tupiniquins, o longa se mostra extremamente atual e correlato com o nosso momento histórico. Alton Sterling, Jeremy Jackson e Phillip Carroll são estatísticas norte-americanas exterminados por suas crenças e por sua cor. Os crimes não ficam longe das mortes de Marielle Franco, Mestre Moa do Katendê e tantos outros negros da periferia das grandes cidades brasileiras. A verdade é que o mundo está em chamas para a raça negra desde a época da escravidão e a maioria das pessoas parece não se importar.

* Essa crítica faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

O que você irá fazer quando o mundo estiver em chamas?

 

Ano: 2018
Direção: Roberto Minervini
Roteiro: Roberto Minervini
Elenco principal: Kevin Goodman, Dorothy Hill, Judy Hill
Gênero: ​Documentário
Nacionalidade: EUA

Avaliação Geral: 3