Observar um baterista de rock, principalmente nos estilos derivados do punk, é quase como ver a pura manifestação da inquietação, da raiva. Uma performance de bater em pratos e tambores que exala energia em todos os poros. Mentes agitadas e inquietas são acolhidas pelo gênero que serve como uma válvula de escape para os problemas que assombram as mentes dos fãs e principalmente, dos que o produzem.
Basta olhar a biografia de grandes nomes do gênero que você pode perceber isso. Em entrevista, a cantora Pitty comentou sobre a então recente morte do cantor Chorão, vocalista da banda Charlie Brown Jr. dizendo que não é o rock quem causa mortes precoces, como no caso do músico e como muitos costumam acreditar, mas que é o contrário. Pessoas que têm coisas mais intensas encontram uma identificação com o gênero. E pessoas mais viscerais acabam se identificando. Nesse sentido, o rock pode ter dado uma vida mais longa ao Chorão do que ele teria caso não tivesse se expressado através de sua música.
O personagem Ruben (Riz Ahmed) de O Som do Silêncio (2019) tem isso no seu sangue, nas suas tatuagens e na forma de tocar sua bateria. Junto com sua namorada, Lou (Olivia Cooke), eles fazem um som punk moderninho numa banda composta apenas pelos dois. Uma espécie de The White Stripes mais agressivo e mais bronzeado. Juntos os dois são uma história típica de casais roqueiros envolvendo problemas com família, drogas e encontrar um novo sentido para a vida fazendo shows e viajando num ônibus que também é a sua casa. Quem gosta de música, principalmente o rock, assim como eu, vai identificar várias características com nomes reais da música.
As coisas começam a desandar quando Ruben tem um sério problema. Ele começa a perder sua audição de uma forma muito rápida, o que prejudica a turnê dos músicos e uma promissora carreira no universo musical. É a partir daí que começamos a conhecer verdadeiramente quem é o personagem, seus traumas e como lida com as situações. Essa coisa visceral que disse logo no começo e que só víamos quando Ruben tocava seus pratos, começa a surgir no dia-a-dia quando ele tenta alguma forma de contornar a situação. A raiva talvez seja o sentimento mais forte que vive dentro dele.
O filme deixa então de seguir um caminho de algo estritamente relacionado ao universo musical e começa a trabalhar, para citar mais uma vez Charlie Brown Jr., os vícios e virtudes dos personagens. Quem somos de verdade, o que os outros esperam de nós e como contornar complicações tão extremas quanto à de um músico que não consegue ouvir sua própria música?
O Som do Silêncio vai trabalhar isso nos colocando na pele do personagem de forma bastante sensorial. Isso é feito, por exemplo, quando Ruben começa a frequentar um local que acolhe pessoas com deficiência auditiva. Lá todos já estão habituados à linguagem de sinais e são capazes de conversar fluentemente. Enquanto ele não aprende, as cenas são silenciosas ou com o som extremamente abafado e somente observando os demais moverem as mãos e braços. Exatamente a mesma sensação que Ruben está vivendo naquele momento. Somente com o passar do tempo, com ele aprendendo a se comunicar como os demais é que as legendas traduzindo o que está sendo dito, são mostradas na tela.
A forma com que a história é contada, com um equilíbrio entre diálogo e os aspectos visuais aqui são impressionantes. São escolhas muito bem feitas entre as informações que serão ditas e as que serão mostradas. Por exemplo, coisas como o passado complicado de Lou com sua família e a relação de Ruben com as drogas não nos são mostradas, os personagens apenas dizem que isso aconteceu em suas vidas e em momento que era conveniente, quando tinha alguma relação com o que estava ocorrendo. No meio de algum diálogo que envolva os assuntos e não para forçar ou algo do tipo.
O visual da mesma forma. Logo no começo de O Som do Silêncio, o casal está deitado numa cama e é possível ver que Lou tem marcas em seu braço, provavelmente causadas por automutilação ou algo do tipo. Mais pra frente, em um momento de tensão entre os dois, vemos a personagem arranhar compulsivamente seu braço. Sem que ela diga isso, entendemos que foi ativado algum gatilho nela que a faz voltar a ter esse impulso.
Ao saber da premissa de que o protagonista é um baterista, é inevitável não lembrar de um outro título relativamente recente que é Whiplash: Em Busca da Perfeição (2014). Além da bateria em comum, o plot dos dois é tão simples que, a princípio, nos fazem duvidar se não será mais um filme motivacional. Whiplash fala de um aspirante a baterista buscando o sucesso e O Som do Silêncio, sobre um baterista ficando surdo. Colocando os dois lado a lado, é possível destacar alguns pontos positivos em comum que fazem esses filmes serem tão interessantes.
Em uma cena de Whiplash, o protagonista Andrew (Miles Teller) precisa de uma pasta contendo a partitura das músicas para poder se apresentar. Misteriosamente essa pasta some, gerando um conflito gigante com seu exigente professor, Fletcher (J.K. Simmons). Um caminho mais confortável e que ficamos esperando, é que ou a pasta apareça no último segundo ou ao menos a gente descubra onde ela foi parar. Porém não. O importante ali era o surgimento de um conflito. Como na vida real, algumas coisas acabam não tendo uma solução exatamente como a gente queria ou nem sempre ficam claras.
Em O Som do Silêncio, coisas desse tipo acontecem o tempo todo. Vou preferir não citar exemplos para não estragar a experiência. Mas é o tipo de situação em que o filme te faz crer que um fato pode desenrolar para uma certa situação, como o protagonista ser descoberto, levar um calote ou ser trocado, mas não acontecer nada disso ou simplesmente prefere não tocar mais no assunto nos deixando querendo saber que fim levou. O importante nesses momentos, é o surgimento do conflito ou alguma situação que irá ajudar no desenvolvimento da história e de seus personagens.
Com isso, o filme sobre um baterista ficando surdo, é delicadamente agressivo ou agressivamente delicado. Temas potentes e até um pouco desgastados, como uso de drogas ilícitas, ganham contornos interessantes. Ponto também para o trabalho de atuação de Riz Ahmed que conseguiu encarnar muito bem a alma de revolta e inquietação do rock’n roll se segurando para não ser agressivo com uma professora de ensino infantil ou o quanto ele está (insira aqui um palavrão) da vida, descontando sua raiva e indignação numa rosquinha no café da manhã.